Central Cee e Denzel Curry trouxeram um novo público ao segundo dia do Primavera Sound,
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Já soavam os primeiros acordes de "Doja" quando Central Cee apareceu no palco. Não foi com pressa. Veio com a postura de quem sabe que já ganhou antes sequer de o beat cair. Os olhos de quem o esperava há horas acenderam-se assim que ele surgiu: calças a escorregar na anca, tatuagens expostas como fragmentos de diário, e uma estrela azul tatuada na cara — como se fosse um farol desenhado para o palco. Luzes brancas cruzavam o céu por cima de nós como flashes de memória, e ele soltou a primeira linha com um sorriso contido “How can I be homophobic?". A multidão respondeu de imediato, numa mistura de grito e abraço.
Vê-lo ali, ao vivo, foi ver o percurso inteiro a materializar-se num só corpo. Filho de Shepherd’s Bush, bairro denso e multicultural de Londres, Oakley Neil Caesar-Su cresceu rodeado de histórias pesadas, música nas esquinas e uma certa urgência nos olhos. Com 26 anos e milhões de streams no bolso, traz hoje o drill britânico polido pela experiência, mas sem nunca lhe ter tirado a aspereza. Começou a dar nas vistas em 2020, e não parou mais. "Loading", "Little Bit of This", "Commitment Issues"— todas apareceram no setlist como pedras fundamentais de uma construção feita em cima de feridas, orgulho e uma capacidade rara de auto-observação.
"Ten" deixou os adolescentes a gritar "At this point, I need no new friends, All I need is a wifey to keep me warm".
Quando começou a tocar "St. Patrick’s", o público já lhe pertencia, e ele saltava entre versos com a leveza de quem sabe exatamente onde pisa. Entre cada faixa, havia pequenos momentos de pausa, olhares, sorrisos de lado, o suor a escorrer pelo pescoço, enquanto olhava para o mar de gente que não parava de cantar.
Num dos momentos mais íntimos, sentou-se no canto do palco e soltou "Let Her Go", cantada em cima do beat como quem resolve ali, naquela noite, deixar algo para trás. Era visível: os adolescentes estavam em êxtase, mas também quem já passou por mais alguns calendários. Havia ali uma espécie de comunhão entre gerações, cada uma a puxar do seu passado para acompanhar os versos dele. E quando finalmente tocou "Sprinter", foi como acender gasolina.
Mas nem só de Central Cee se fez esta noite. Mal terminou, a transição foi quase brusca — Denzel Curry entrou num outro palco com energia de trovão. Nada de contemplações. Era suor, grito, catarse. Começou com "Zone Three", rugido direto ao peito, e logo depois mandou um sonoro “Fuck ICE” — mais do que uma frase, era um corte na noite. O público respondeu, como sempre responde quando as palavras têm peso político. Denzel não canta apenas, ele bate. Ele transforma raiva em arte, e arte em libertação. O seu corpo é um tambor vivo, cada músculo uma linha de baixo, cada expressão facial uma batida que sentimos na garganta.
Um trouxe a noite britânica nos ombros, o outro os trovões da Florida. E ali, entre a poeira e os gritos, entre os refrões tatuados nos braços e os olhos que ainda ardiam da luz, ficou a certeza de que certas noites não são só concertos. São capítulos, tatuagens e cicatrizes na memória daqueles que por ali passaram.