“The talking car”, de Agnieszka Polska, é um psicotrópico para lidar com o Mundo
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Coincidências. No espaço de um mês, dois teatros do Porto acolheram automóveis em cima do palco. No Carlos Alberto, um Toyota espatifado tinha papel central na ação de “O salto”, espetáculo de Tiago Correia que lembrava as razões para fugir do Portugal do Estado Novo. Já no Rivoli, num dos espetáculos que integram a programação do Festival Internacional de Marionetas do Porto, “The talking car”, é a vez de um Honda dar guarida a um conjunto de personagens peculiares.
Nada mais que os carros a ligar os dois momentos. “O salto” é um trabalho de realismo, de gritos que significam dor, de desabafos que soltam tormentos. A primeira experiência na encenação da polaca Agnieszka Polska, que resulta de um desafio lançado pela BoCA – Biennial of Contemporary Arts, é psicadelismo puro, confundindo tempos, identidades e lugares.Com elenco internacional, onde constam nomes como Albano Jerónimo, Iris Cayatte, Vera Mantero, Bartosz Bielenia e Aaron Ronelle (o “actor soul” que manipula a marioneta digital nomeada como “futuro bebé”), “The talking car” parece resultar do consumo de uma mistura de “droga para rinocerontes” e LSD, produzindo situações alucinadas – como a personagem que vai surgindo a correr, no meio da estrada, tentando entrar no veículo.
Nunca o espetáculo se leva a sério, mas é no seu sarcasmo que se encontram pistas para tópicos tangíveis. Há uma entidade superior a dominar a história – Marlene. Também ela pouco fiável: dá indicações contraditórias sobre o tempo que falta para o carro chegar ao destino, que nunca sabemos qual é nem damos grande importância a isso.
Há o “futuro bebé”, cara rechonchuda e vermelha que anuncia trazer “a esperança e a destruição”. Há uma criança selvagem criada por máquinas. Há a citação de um poeta apropriado – William Blake. Fala-se da “segunda vinda” de Cristo. De um Mundo carregado de detritos. Da imbricação do orgânico com o tecnológico. E de um futuro diferente. Lembramo-nos de Kurt Vonnegut e da sua abordagem aos bombardeamentos de Dresden em “Matadouro 5”. A impossibilidade de descrever o horror fê-lo criar uma pândega intergalática.