Prophets of Rage e Gogol Bordello deixaram Vilar de Mouros entre a raiva e a felicidade
A edição de 2019 do festival EDP Vilar de Mouros encerrou com a alegria no máximo, na festa de Gogol Bordello, sábado à noite. Já os Prophets of Rage fizeram estremecer o recinto de tanto que se saltou.
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Do mais enraivecido ativismo à mais longa dança pode ir um pequeno passo. No caso de Vilar de Mouros, foram uns 40 minutos que intermediaram o fim do concerto de Prophets of Rage e o início de Gogol Bordello. Era preciso tempo, ressalve-se, para recuperar daquele final com "Killing in the name of", de Rage Against the Machine.
O super grupo Prophets of Rage entrou em Portugal a escancarar tudo. Cada um deles já tinha estado em solo luso com as respetivas bandas (Rage Against the Machine, Cypress Hill e Public Enemy), mas foi, para todos, a estreia nesta versão profética que prega o ativismo e evangeliza rápido.
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A mensagem sob forma de rap metal conquistou o público nos primeiros segundos da primeira música, também chamada "Prophets of Rage" (Public Enemy), por via de incentivos típicos do rap, um baixo infernal de Tim Commerford e a mítica distorção da guitarra "Arm the homeless" de Tom Morello.
O concerto logo derivou para Rage Against the Machine, maioritária no alinhamento, com "Testify". Duas músicas depois, "Guerrilla Radio" criou uma mosh maior que a de Offspring no dia anterior, mostrando que Rage era claramente o que os festivaleiros estavam ali para provar. Não que o rap mais clássico de "How I could just kill a man" (Cypress Hill) não tivesse sido apropriado e apreciado, mas é da combinação do duo de cordas com a bateria que são feitos Rage Against the Machine e Audioslave. E estava lá muitos praticantes daqueles dois projetos.
De Rage houve ainda o riff louco da guitarra de "Know your enemy", mosh extrema de "Take your power back", o nu-metal de "A bullet in the head" e as seríssimas "Bulls on Parade" e "Killing in the name of". Tom Morello, que juntou os Prophets of Rage, continua a ser um dos guitarristas mais inovadores do Mundo, capaz de tocar de qualquer forma e feitio. Ele tira o cabo da guitarra e bate no jack, ele faz música a desafinar a os instrumentos, ou vira-a ao contrário e toca com o queixo para mostrar um símbolo anti-nazi que tem colado na parte de trás.
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Foi, claro, influente na parte final do concerto. Em "Bulls on Parade", quem não estava na mosh cantava ou saltava, pois todos já pertenciam àquele movimento profético por via do momento que foi ouvir o tema de 1995 ao vivo. É claro que nada é igual sem a voz de Zack de la Rocha, o vocalista de Rage, mas "Killing in the name of" faz esquecer isso. Aos primeiros acordes já está tudo a cantar aos saltos e percebe-se que o dogma vai ser acatado de forma louca.
"Killing in the name of" leva os braços ao ar, a temperatura aquece exponencialmente, há milhares em mosh e vêm-se expressões de todos os feitios. Até anda por lá a cabeça de um flamingo insuflável cor-de-rosa, migrado da acalmia da praia fluvial para a mosh pit poeirenta. Atrás do sexteto aparece a mensagem a vermelho: "Façam Portugal enraivecer novamente". Grita-se de raiva cada sílaba da letra até a voz falhar e tudo acabaria perfeito ali. Contudo, Tom Morello prometeu outra e ouviu-se "Bombtrack" essa sim para acabar, também de Rage.
No final do aplauso agigantado e da tradicional fotografia, ouve-se a voz de Chris Cornell na "Black Hole Sun" que passa nas colunas, e em vez de se formar a costumeira avalanche de gente a abandonar, cantou-se com alma em homenagem ao vocalista de Audioslave que morreu em maio de 2017. Foi a homenagem espontânea dos fiéis, porque esta religião também não esquece quem já não está cá. Antes, a meio do concerto, tinha havido outra, quando os Prophets of Rage tocaram "Cochise" (Audioslave), sem voz, deixando o microfone iluminado que seria de Chris Cornell, ao centro sob luz branca.
Gogol Bordello foi uma festa familiar
Também os Gogol Bordello quiseram e conseguiram cativar o público rapidamente. À terceira largam a "Wonderlast King" que convida os mais envergonhados à dança e a partir daí foi uma jornada festiva que ninguém queria que acabasse. O punk rock misturado com o folk aguerrido tradicional de leste a que se costuma dar o nome de Gypsy Punk é uma receita que funciona sempre, embora a constante presença dos multiétnicos nova-iorquinos em Portugal possa fazer esquecê-lo.
"Obrigado Portugal, obrigado família" foi a última frase que deixaram em palco e isso diz muito da relação que o nosso país tem com Gogol Bordello. Antes de "My Companjera", perto do início, o líder desta orquestra chamado Eugene Hütz já tirou o casaco brilhante para mostrar uma t-shirt rosa que também pouco durou.
Em "Immigraniada (We Comin Rougher)" explora-se todo o potencial da distorção da guitarra com o violino folk Sergey Ryabtsev. Que nunca se substime a importância deste sexagenário da Rússia, exímio na técnica e contagiante na forma com que interage musicalmente com o público.
Já perto do final, uma luz roxa anuncia a "Start Wearing Purple" e Vilar de Mouros ganha outra estória. Exulta-se, dança-se como se não houvesse amanhã, há copos no ar, o flamingo rosa já tem a companhia de uma bóia branca de praia, há gente a dançar às cavalitas, voam umas calças pretas, e Elizabeth Sun já está com o bombo no palco. É a festa total, com o violinista Sergey Ryabtsev a fazer de maestro, com o microfone apontado para o público, porque o vocalista Eugene Hütz abandonou o posto e está de pé, nas grades, a cantar com a audiência. Foi um momento memorável.
A festa que não queria acabar ainda teve "Undestructable", a última, antes do tal "obrigado família". Gogol Bordello é aquele familiar que vemos de longe a longe e a quem damos um longo abraço. Nunca se consegue desgostar
Se é certo que o EDP Vilar de Mouros teve menos quatro mil pessoas na noite de ontem do que na anterior, com Skunk Anansie e The Offspring, também se viu que a energia imprimida pelos protagonistas de ontem esteve longe de ser inferior e a satisfação do público no caminho para a zona after rock era igual ou maior.