Coreografia de Victor Hugo Pontes para as palavras de Gonçalo M. Tavares, "Os três irmãos" subiu esta segunda-feira ao palco físico e virtual do Teatro Rivoli, no Porto, no âmbito da 5.ª edição do DDD - Festival Dias da Dança. É um punhal cravado no coração do amor fraterno. Esta quinta-feira o espetáculo vai estar no Teatro Municipal Sá de Miranda, em Viana do Castelo.
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Numa das primeiras cenas de "Os três irmãos", peça que marca o encontro entre o movimento de Victor Hugo Pontes e as palavras de Gonçalo M. Tavares, as personagens discutem para ver quem se lava primeiro. Impõe-se o irmão mais velho, que toma banho com água limpa. Quando o do meio entra na banheira, diz que se está a lavar com a água suja do irmão mais velho; e o mais novo dirá que se lava com a água suja dos dois irmãos. Fica lançado um dos temas do espetáculo: a hierarquia entre irmãos. E o seu tom sombrio, movediço e violento.
Gonçalo M. Tavares, que partiu para o desafio de escrever "Os três irmãos" através de uma listagem de palavras enviadas pelo coreógrafo, disse que a peça lhe parecia "cinema mudo" quando a viu pela primeira vez. Mas talvez "teatro mudo" fosse mais certeiro. Porque não há correspondência exata entre as palavras da peça, projetada integralmente ao longo do espetáculo, e as ações dos três bailarinos - Dinis Duarte, Paulo Mota e Valter Fernandes. E não é só por a gestualidade dos irmãos estar longe de qualquer naturalismo, mas também por haver um jogo constante com as indicações cénicas, que são atraiçoadas ou seguidas sem qualquer intuito de ilustração. Num dos momentos mais terríveis, quando se dá o primeiro sacrifício entre os irmãos, a didascália diz que há som de berbequim, mas não se ouve nada. E quando somos informados que os irmãos vão comer, o que vemos são dois troncos curvados que, na sua abstração, se assemelham a ruminantes.
A estratégia foi suprimir as palavras depois de as digerir, como explicara ao JN Victor Hugo Pontes. O que faz desta coreografia, não uma peça sem texto, mas um objeto em que o texto é exprimido plasticamente pelos corpos dos bailarinos. "Teatro mudo" talvez seja insuficiente para a classificar. Pensemos antes em "Caravaggio", uma das palavras com que o coreógrafo provocou o escritor. Numa das cenas em que procuram o pai - e essa busca é o mote de todo o movimento e de todo o caminho para a catástrofe -, já o palco foi esburacado e riscado a giz com as palavras "pai" e mãe", o irmão mais novo magoa-se no pé e fica inerte. Os outros dois colocam-no em cima de um carrinho de obras e começam a compor o seu corpo, e a si próprios, de modo a reproduzir "O sepultamento de Cristo", uma das peças de altar mais famosas de Caravaggio. E noutros momentos, em que os três corpos se emaranham, se empilham e confundem, outros quadros do artista do barroco, caracterizados pela expressividade e pelo tenebrismo, parecem também ser esboçados.
Todo o espetáculo é marcado por essa plasticidade intensa, que reflete o percurso sinuoso dos três irmãos, feito de competitividade, inveja e confissões tenebrosas. Há esta ideia sobre um passado que apenas é conhecido pelo mais velho, o que lhe confere vantagem sobre os outros, mas também um "carimbo" que assinala a sua condição - uma mera propriedade do seu pai, alguém que nunca é visto, que não se sabe se existe, mas em nome de quem a violência dispara.