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As contas de deve e haver da cerimónia que pulverizou todos os prémios mas que, ainda assim, deixou um saldo de positivo de diversidade e união.
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É uma surpresa, mas não exatamente um êxtase: "Green book", o cálido "buddy movie" de Peter Farrelly que é o "Driving miss Daisy" invertido para o século XXI, foi escolhido como o melhor filme do ano. E foi dos mais premiados, com um total de três Oscars: houve ainda um secundário para o ator Mahershala Ali, que se junta ao panteão onde até agora residia sozinho Denzel Washington como o único ator negro com dois Oscars no peito, e ainda o Oscar de melhor argumento original.
É uma escolha assim-assim: sem arrojo, sem pingo crítico de coragem, que deixa no ar a ideia de que, afinal, poderia ter ganho outro qualquer. Óbvio, calculista, demasiado composto e sem querer assumir os seus riscos, o filme tem todo o sangue ordenado e canalizado para o DNA da auto-satisfação do espetador. Não é que haja mal nenhum nisso - será mesmo o filme com o espírito mais positivo dos oito candidatos, a par de "Black Panther" -, mas a escolha parece pequenina para preencher o papel da melhor obra do ano.
Tudo sobre os Oscars 2019
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E "Roma" ganhou mais ou perdeu?
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Boa pergunta. Com 10 nomeações, o poema lírico do mexicano Alfonso Cuarón, que levanta em "Roma" uma homenagem sentimental à sua infância e ao México de 1970, épico e íntimo, pleno de pequenas grandiloquências, belissimamente filmado no seu rendoso preto e branco, foi premiado com três Oscars (Realização, fotografia e Melhor estrangeiro), os três para o bolso do seu realizador-argumentista-diretor de fotografia.
Um triunfo? Para Cuarón, certamente, até porque o cineasta é distinguido como o melhor realizador seis anos depois do mesmo prémio com "Gravidade". Mas globalmente, e sobretudo para o produtor/distribuidor Netflix, que falha a História como a primeira plataforma de streaming a ganhar o Oscar de melhor filme, "Roma" ficou aquém das suas numerosas, e muito válidas, pretensões.
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"Black Panther" é um triunfo
A primeira grande produção de super-heróis de sempre a conseguir uma nomeação para o Oscar do melhor filme, um feito conseguido pela Marvel, saiu coroada dos Oscars 2019, apesar de ter perdido quatro prémios em sete (ganhou banda sonora, guarda-roupa e design de produção). Mas "Black Panther", um filme que devolve orgulho a qualquer afro-americano, é um inegável triunfo, celebrado com justo júbilo, superando as suas próprias expectativas. Além de que é, nesta altura, o terceiro filme mais lucrativo de sempre (após "Titanic" e "Avatar", ambos de James Cameron, que superaram a barreira dos dois mil milhões de dólares em proventos)
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Foi o choque da noite
A norte-americana Glenn Close ("The wife") perdeu o Oscar de melhor atriz para a inglesa Olivia Colman, de "A favorita". Foi a surpresa mais chocante da noite. Close, que completa este ano 72 anos, estava nomeada pela sétima vez e era uma aposta blindada para o Oscar (a única?) num ano de grande polarização.
Ela é encantadora e fulminante no papel da mulher abnegada que vive para a carreira do marido que acabou de ganhar o Nobel da literatura no filme do sueco Björn Runge e faz uma das performances mais ricas, fascinantes e complexas da sua bela carreira. Mas agora é detentora de um recorde: é a atriz mais vezes nomeada que mais vezes perdeu: sete. E o número continuará a contar...
"A mulher" não é, globalmente, um filme brilhante, mas o seu desempenho nesta sátira ao mundo literário e à Academia do Nobel - há um monstruoso volte-face a meio do filme, que não se pode contar porque seria um horrível spoiler - chega-nos com uma urgência atroz e o desempenho de Glenn Close é daqueles que ficará para sempre a ressoar no coração do espectador.
Olivia Colman, 46 anos, um tesouro nacional dos palcos de Londres, é agora um tesouro global e rigorosamente roubou o Oscar a Glenn Close.
"A favorita" é seguramente o maior derrotado da noite: 10 nomeações e apenas um prémio; as atrizes secundárias Emma Stone e Rachel Weisz, ambas candidatas, borrifaram entre si as suas viabilidades e perderam ambas nessa cisão para Regina King", de "Se esta rua falasse", o exangue filme de Barry Jenkins, vários furos abaixo de "Moonlight", que lhe deu o Oscar há dois anos. Em "A favorita", ela é a Rainha Ana da Grã-Bretanha, a triste e gorda monarca do início do séc. XVIII que vai unificar Inglaterra, Irlanda e Escócia e fundar o Reino Unido, numa corte de intrigas em que vive assediada por duas consortes-amantes, doença e solidão. O filme, alienígena e genial, é um ácido drama muito cómico em que o cineasta grego Yorgos Lanthimos espreita para os bastidores do poder e nos deixa vislumbrar, fascinados, essa antecâmara do corrução e do horror.
Olivia Colman subiu ao palco toda perplexa, toda engasgada, e demorou várias segundos até conseguir articular uma frase inteira. Saiu a tremeluzir lágrimas, evidentemente.
Spike Lee quis sair da sala
Spike Lee, o realizador de "Blackkklansman", que ganhou o prémio de melhor argumento adaptado, o seu primeiro Oscar competitivo (ganhou um em 2016, mas era honorário), não estava satisfeito e no final da cerimónia disse isto aos jornalistas: "Cada vez que aparece alguém a conduzir alguém, eu perco". E não estava, aparentemente, a brincar.
Spike está a referir-se a duas coisas: à vitória de "Green book" como melhor filme do ano, que derrotou a sua comédia satírica sobre um detetive que se infiltra no Ku Klux Klan, e que é um filme em que um afro-americano é conduzido de carro por um ítalo-americano; e está a referir-se também a "Driving miss Daisy", a produção que em 1990 venceu o Oscar de melhor filme e que derrotou o seu "Não dês bronca", que perdeu os dois Oscars e os quatro Globos para que estava nomeado nesse ano. Também em "Driving miss Daisy" há alguém que conduz alguém - no caso um condutor afro-americano (Morgan Freeman) e a sua rica e branca patroa latifundiária (Jessica Tandy).
A agência AP relata que Spike Lee pareceu bastante irritado quando a trupe de "Green book" subia ao palco para as honras da noite e que quis mesmo abandonar a sala. Terá sido impedido pelo staff da Academia e tornou a sentar-se, amuado.
"Blackkklansman" tinha seis nomeações e ganhou apenas pela escrita do argumento, que Spike dividiu com três autores. Nessa altura, o cineasta de 61 anos, que envergou um cintilante fato púrpura com boné torcido a combinar, ainda sonhava e estava bastante satisfeito consigo mesmo: subiu ao palco e saltou, literalmente, para o colo de Samuel L Jackson, que lhe entregou a estatueta. Num discurso fervoroso, ergueu o punho da política a olhar para as eleições presidenciais americanas de 2020: "Vamos mobilizar-nos! Façam a vossa escolha moral, escolham entre amor versus ódio". E citou para conselho o título do seu filme de 1990: "Do the right thing!" (façam a coisa certa).
Filme dos Queen ganha quatro Oscars
"Bohemian rapsody", a biografia-wikipédia de Freddie Mercury, isto é, uma versão amornada e arrumadinha para não assustar o consumo em massa das famílias, cifra-se entre os grandes vencedores, com quatro Oscars: ator, montagem, edição de som e mistura de som.
O herói de "Bohemian rapsody é o escasso valor artístico que vale a pena celebrar na fita dirigida por Bryan Singer, realizador que acabou despedido a duas semanas de terminar a rodagem e hoje, acusado de assédios homossexuais, é persona proscrita em Hollywood - não foi por acaso, certamente, que ninguém o referiu nos agradecimentos.
Esse herói é Rami Malek, 37 anos, ator que supera o efeito-choque do arpão dentário do cantor dos Queen e empresta à personagem uma gravitas e uma densidade psicológica que aguenta sobre os seus ombros vigorosos todo filme - e se eleva muito acima dele.
O discurso do ator revelado em "Mr Robot" foi emocionado: "Fizemos um filme sobre um homem gay, um imigrante, um homem que viveu a sua vida sem pedir desculpa por ser quem era", disse Malek. "O facto de o estarmos a celebrar é a prova de que ansiamos por histórias como esta".
Relevante: Rami Malek venceu o Oscar à sua primeira nomeação, coisa que também sucedeu a Olivia Colman - e esta é mais uma facada no orgulho, certamente agora magoado, de Glenn Close. E aqui todos imaginamos a magnífica atriz na pele de Alex, a endoidecida amante descartada de Michael Douglas no "Atração fatal", de 1987 (um Oscar que também perdeu), a assassinar e a cozer o coelho de estimação da filha dele...
"Vice" cai de joelhos
Juntamente com a ácida sátira de "A favorita" (um Oscar em dez hipóteses, uma pena esta desconsideração), "Vice" de Adam Mckay, é um filme que caiu de joelhos na Academia e sai arrasado da gala de prémios - apenas um Oscar (caracterização) em oito nomeações...
Apesar de ser um filme divisivo e talvez demasiado esperto, causou desgosto a muita gente ter saído de mãos a abanar. A sua proposição é brava: uma ficção documental híbrida sobre o Mal que estrincha todo o género de convenções, e pelo caminho ainda goza com o espetador.
"Vice" relata-nos a biografia de um homem de peito oco e literalmente sem coração: Dick Cheney, o vice-presidente de Bush Jr que, não só foi o presidente de facto da América de 2001 a 2009, como ainda torceu e partiu para sempre o mundo após o 11 de setembro, deixando-o infeccionado para sempre, com vírus e venenos que continuam e continuarão a reproduzir-se pela eternidade.
Bradley Cooper também perdeu
A cantora Lady Gaga, que vestiu Alexander McQueen e surpreendeu pelo bom gosto e contenção, ganhou o Oscar a primeira vez em que foi nomeada, com apenas 32 anos. Foi o único prémio de "Assim nasce uma estrela", filme escrito, dirigido e interpretado por Bradley Cooper que aspirava a oito estatuetas e que era, dos oito candidatos a melhor filme, o mais académico do total (sem que nisso haja mal algum...). Levou apenas o prémio da melhor canção original, "Shallow", que o ator e Gaga entoaram romanticamente em palco. E não, eles não são um novo casal: Irina Shayk, mulher de Cooper, sentou-se bastante firmemente na sala no meio dos dois.
Fez falta o apresentador?
A 91.ª cerimónia dos Oscars, uma das mais curtas de sempre (195 minutos) não teve anfitrião. O ritmo do espetáculo não saiu prejudicado, antes pelo contrário, mas o descarte do apresentador trouxe um efeito secundário negativo: foi das cerimónias com menos humor de toda a história.
O que se ganhou? Democracia, isto é, inclusividade e diversidade, que foram os sentimentos reinantes - além de que não se hostilizou a faixa de espetadores republicanos e conservadores, ou seja a metade da América que consegue sempre sentir-se insultada pela liberalidade de Hollywood.
Chazelle já tinha perdido
Damien Chazelle, autor do popularíssimo "La la land", levou este ano aos Oscars uma obra requintada de relojoaria espacial: "Primeiro homem na lua", uma aventura sci-fi que transforma uma epopeia num intimíssimo melodrama de um homem cercado por todos os lados pela sua imensa solidão. Venceu apenas o Oscar de efeitos visuais e perdeu dois (montagem de som e a mistura de som ) para o histriónico musical dos Queen. É um filme de grandíssima produção que já partia derrotado com apenas três nomeações.
E aquele discurso de Rayka?
Rayka Zehtabchi fez, para muitos, o melhor discurso da noite: eletrizada, genuína e genuinamente feliz. A realizadora irano-americana vai ficar na memória por ter tido a melhor tirada da gala. Cara entumescida, fervente, subiu ao palco e disse isto: "Oh meus Deus, não acredito que um filme sobre a menstruação acabou de ganhar um Oscar".
O seu filme chama-se "Period. End of Sentence" venceu o Óscar de melhor curta documental com um filme-choque que retrata a bárbara e intolerável condição em que vivem muitas mulheres indianas que enfrentam monte e o céu e todo o tipo de estigmas sociais só por causa de serem mulheres e terem naturalmente menstruação.
Dois portugueses a saltar
Nota patriótica final: há dois portugueses que ganharam um Oscar. São os técnicos de som do documentário "Free solo", dos directores Jimmy Chin e Elizabeth Chai Vasarhelyi. Eles chamam-se Joana Niza Braga e Nuno Bento, têm os dois 27 anos, e a esta hora ainda estão certamente a saltar.
