A quota mínima de música portuguesa na programação das rádios baixou de 30% para 25%, voltando à percentagem que vigorou desde 2006, com exceção do ano de 2021. Há dois anos, a então ministra da Cultura, Graça Fonseca, anunciou que, no âmbito das medidas de resposta à pandemia da covid-19, a quota seria reforçada em 5%. O objetivo era claro. "Incrementar a divulgação de música portuguesa" e "a sua valorização em benefício dos autores, artistas e produtores".
Corpo do artigo
Forte contestatária da medida, a Associação Portuguesa de Radiodifusão (APR) esperava que a mesma passasse a vigorar daí em diante. Contudo, foi surpreendida com a ausência de renovação da portaria, como confirmou o JN junto da Entidade Reguladora da Comunicação Social.
Para o Ministério da Cultura, a alteração do limiar mínimo de quotas de 25% para 30% "ocorreu num contexto muito específico de pandemia", em que os artistas foram privados de realizar concertos, "sofrendo por esse motivo uma substancial perda de receitas". Ultrapassada essa fase, o gabinete do atual ministro Pedro Adão e Silva decidiu-se pelo regresso à percentagem anterior, "uma medida que se tem mostrado muito importante desde a sua criação, tanto assim que hoje, na generalidade das rádios, a utilização de música portuguesa tende a superar, por opção editorial, o valor da quota".
Apesar de ter cumprido os 30% no único ano em que estiveram em vigor, a APR reagiu com agrado à reposição dos índices. "Essa quota [de 30%] condicionava a liberdade e o posicionamento das rádios", frisa Luís Mendonça, que considera "não existir produção suficiente para assegurar esses valores".
O argumento não convence o meio artístico. A começar pela Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), cujo presidente, José Jorge Letria, se socorre dos números para rebater a ideia. "Há muitos criadores. Recebemos todos os meses 60 novos autores e a maioria são músicos", aponta. Ainda segundo o líder da SPA, mesmo que a falta de oferta atual fosse real, haveria a possibilidade de as rádios recorrerem ao património histórico: "Quantas vezes ouvimos José Afonso nas rádios? Só por esse exemplo vemos que há muito por explorar no repertório português".
Para Letria, que é escritor e letrista, a diminuição da quota é tanto mais gravosa quanto reduz a "presença de música portuguesa que já está aquém do desejável". Além da inércia ministerial, culpa "a falta de vontade dos programadores de rádio" no reforço da presença das canções portuguesas no éter.
Rádios: saúde frágil
O regresso da quota de 25% foi uma das raras boas notícias que as rádios nacionais receberam nos últimos anos. Segundo a associação setorial, a pandemia veio tornar a saúde das emissoras "muito mais frágil", pelo que não é de estranhar que, na renovação dos alvarás de concessão que já se avizinha, "muitos empresários estejam a pensar se compensará o investimento", diz Luís Mendonça.
Para cúmulo, segundo a APR, o ministro da Cultura "não está virado para os problemas do setor", como terá ficado patente nas recentes reuniões mantidas. "Mais do que subsídios", a associação pede "políticas abrangentes". As principais medidas passariam por uma distribuição mais equitativa da publicidade institucional e pelo alargamento a todos os atos eleitorais das verbas de compensação financeira pela transmissão dos tempos de antena.
Da "ignorância" à "falta de amor-próprio": artistas reprovam mudança
Mais do que a descida de 5% da quota de música nacional nas rádios, o que a medida revela é a "falta de amor-próprio" e "o complexo de inferioridade" de um país que bem poderia olhar para o exemplo dos vizinhos espanhóis, muito assertivos na defesa da sua cultura.
Quem o diz é a cantora e compositora Márcia, que destaca ainda a "memória curta" reinante: "Além dos profissionais de saúde, quem ajudou a população a atravessar a pandemia foram os artistas. A música, a arte, a poesia foram fundamentais nessa altura para a saúde mental".
Também o músico e produtor Moullinex tem dificuldade em assimilar o retrocesso agora confirmado e lamenta o "défice de representatividade", que atribui à "falta de autoestima" e "à necessidade prévia de validação externa". Mas o que choca mesmo os dois artistas é o argumento da escassez de produção nacional para descer a quota para 25%. "Só por ignorância se pode dizer isso. Basta ir ao Spotify para perceber a diversidade da música portuguesa atual", diz Márcia.