Durante pouco mais de uma hora, na noite de despedida do festival, Raye falou de amor, de sonhos, de abuso, conversou, contou histórias, mostrou uma voz como há francamente poucas na atualidade. Prometeu dar tudo em palco, e deu. Declarou ter-se apaixonado pelo público, e foi retribuída.
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A dado ponto do concerto de Raye, na última noite do Meo Kalorama, a artista britânica deambulava sobre se seria esta a sua estreia em Portugal: talvez sim, ou não, dizia. Não se lembrava de ter cá vindo, não estava a reconhecer o público, tão acolhedor, dizia, tinha sido um ano de loucos e era possível que se tivesse confundido, dizia.
Pareciam nervos, e eram; naquela que foi, de facto, a estreia em Portugal da cantora que este ano bateu recordes nos Brit Awards ao ganhar mais prémios (seis) numa noite, vir-se-ia a perceber que este é muito o registo da artista de 26 anos; vir-se-ia a perceber muita coisa, na verdade.
Sobretudo, que Rachel Agatha Keen é uma artista com “A” grande, com potencial claro para deixar uma marca indelével na música. Não é o nascimento de uma estrela porque, desde o lançamento, em 2016, do single com Jonas Blue, "By your side", desde o aclamado álbum “My 21st century blues”, que muito se espera dela. No Reino Unido, tem um single de dupla platina, cinco de platina, quatro de ouro e quatro de prata em seu nome. Ainda antes disso, enquanto preparava, com tempo, a sua estreia, escreveu canções para alguns dos maiores artistas do mundo, de John Legend a Beyoncé, para apenas nomear alguns.
O concerto do Kalorama foi por isso, não o nascimento, mas o crescimento de uma estrela, todo o público presente a poder assistir a uma artista naquela fase da carreira em que tudo está a virar, uma cantora que consegue ser menina, mulher, jovem e tão madura, frágil, forte, feliz, triste, nervosa, segura, tudo ao mesmo tempo e numa rara combinação.
“Estou-me a apaixonar por vocês”
A cantora entrou no Palco Meo às 22 horas certas de sábado, logo a cumprimentar a multidão: “boa noite, Lisboa, como se sentem hoje? Espero que estejam prontos para se divertir!”. Foi a primeira interação de Raye, mas não seria a última.
Depois de se confessar uma pessoa “muito dramática, que gosta de coisas muito dramáticas”, de agradecer “a cada ser humano que tirou o seu tempo para nos vir ver”, de explicar que escolhe a cada noite a sua setlist de acordo com o público “e não vou mentir, a vossa mood é elétrica e vou dar tudo que tenho, vou mesmo”, declarava ainda a dado ponto, encantadora, sentada no chão, isto “devido a uma dor de costas que estou a tentar curar e já está melhor mas é preferível assim”, dizia então “eu gosto de falar, já devem ter reparado”.
A interação de uma artista com o público, com os fãs que a seguem e a adoram, nunca será considerada demais, e certamente não foi o caso; nem afetou, pelo contrário, o desenrolar do concerto, que começara com “The thrill is gone” e “Worth it”, antes de um tema sobre “adições de qualquer género” como explicou, “Mary jane”.
Em “Worth it”, tecnicamente escolhido pelo público depois de lhe ser dada a opção entre duas canções, e depois de coros generalizados, Raye termina a garantir que lhe custa acreditar na “quantidade de pessoas que conheciam esta canção”, lançando a dúvida de “o que fiz eu para merecer isto?”, uma humildade desconcertante para quem, meros segundos antes, estava a entregar vocais e melismas com uma qualidade impressionante.
Falar da dor e a música como cura
Depois, e ao introduzir o tema “Ice Cream Man”, música que relata o dia em que Raye foi vítima de abuso sexual, a artista explica como lhe custa cantar o tema, na verdade odeia, mas fá-lo por achar importante, por sentir que a música é remédio, e cura. “A música salvou a minha vida”, frisa. Esta, em particular, por mais difícil que seja a ela voltar, “permitiu-me endereçar o assunto, falar dele com os meus pais”, acrescenta ainda já de lágrimas nos olhos, que regressam depois, no agradecimento do final do tema. “Obrigada, sei que foi triste mas fui honesta”, garantiu perante uma ovação que a levou a confessar estar a “apaixonar-se” pelo público de Lisboa.
Chega depois “Genesis”, canção de sete minutos, primeiro mais de rap, depois de blues e jazz. “Quanto tempo temos ainda? Meia hora? Será que dá para estas músicas todas? Talvez ajude se eu parar de falar?”, brinca antes de “It’s a man’s world”, cover do clássico de James Brown, que confessa adorar.
Até ao final, o resto do concerto muda de tom e decorre num ritmo mais dançável e quase de discoteca, o que também resulta – para muitos no recinto, dado o espírito de festival, talvez até melhor – com “Secrets”, o vertiginoso “Black mascara” e “Prada” numa versão mais rock, público todo a acompanhar de mãos no ar. Antes de cair o pano com “You don’t know me” e o gigante hit “Escapism”, Raye repara ainda num cartaz no público, de uma rapariga, a dizer, em inglês: “nós viemos de Madrid, uma tempestade não nos parou”, levando-a a agradecer o esfoço e endereçar o cancelamento do concerto na véspera, no novo Kalorama da capital espanhola: a intempérie de sexta-feira que também impossibilitaria a atuação dos Soulwax em Lisboa devido a danos causados no material, obrigou-a a desistir de cantar no país vizinho, já que começou justo na sua hora de entrada.
Em jam e festa até ao fim, Raye foi amor à primeira nota para quem não conhecia, e a consagração total para os seus já muitos fãs.
Burna Boy e a energia positiva
Pelas 00.30 horas deste último dia, Burna Boy, que tem conquistado o mundo com a sua sonoridade afrobeat, conquistou também o mundo da Bela Vista. O nigeriano, um dos artistas africanos mais bem sucedidos de sempre, entrou em palco com “Location”, e numa velocidade alucinante foi tocando temas como “Secret” ou “For my hand”, gravado com Ed Sheeran.
Aparentemente felicíssimo com a receção da multidão, foi sempre interagindo, agradecendo, pedindo barulho, ou coros, perguntando “como se sentem?”, declarando “adorar” o público nacional.
Entre o dance e o hip hop, o R&B e as batidas africanas, com uma enorme e vibrante banda em palco, o nigeriano provou como uma despedida de festival também se faz assim, com boa energia, boas batidas, músicas contagiantes e coros quase constantes.
Fugirmos das coisas instantâneas
Antes de Burna Boy e de Raye, o palco secundário acolhera um dos grupos favoritos dos portugueses, os dEUS, para mais um gigante concerto, até porque não parecem saber fazer pior. Para o grupo que já anda nisto há 30 anos (o que levanta a questão de como é que os seus elementos parecem não envelhecer), é “business as usual” ter uma hora de concerto, chegar a palco, dar tudo, tocar temas do ano passado e de quase outra vida, tantas são as memórias que acarretam com a mesma naturalidade, com um som impecável, a interação ao nível ideal, adeus e até para o ano – ou, de preferência, até para o mês, ninguém se importaria.
Tocar num festival não é o mesmo de uma Aula Magna ou Coliseu, mas a experiência traz destas coisas, como a arte de escolher alinhamentos: para fãs, foi perfeito, embora faltem sempre temas; para quem não conhece, se não se converteu (passe o trocadilho), nunca o fará.
“How to replace it”, do disco com o mesmo nome que trouxe o grupo de volta no ano passado, 11 anos antes do anterior, foi a música de abertura, seguida de “Quatre mains” e “The architect”, não sem antes Tom Barman atirar “Merci beaucoup, somos dEUS, boa noite, obrigado”.
Depois de “Man of the house”, Barman explica como o grupo está prestes a celebrar “o jubileu de um álbum antigo”, para apresentar “W.C.S. (First draft), do magnífico disco de estreia da banda, “Worst case scenario”. “Só temos uma hora por isso vamos avançar” acrescentou depois em português o vocalista, que mora parte do tempo no nosso país, e entra “Instant street”, provavelmente uma das músicas com melhor final em crescendo (e melhor principio, e meio) de sempre - quantas vezes será normal ouvir o mesmo riff de guitarra, em loop e a acelerar, sem nunca ter vontade de que ele pare?
“Fell of the floor, man” e “Sun ra” seguem-se, e depois “Hotellounge”, ainda tão bonita e estranhamente desconstruída, ainda a soar tão inspirada como no primeiro dia, tantas lembranças contidas numa simples canção.
De “Pocket revolution”, também já num distante 2005, vem para terminar “Bad timing”, com o seu, novamente, crescendo catártico, culminando num final perfeito, embora muitos no público ficassem longos minutos a pedir encore: talvez à espera de “Suds & soda”, ou de qualquer um dos outros muitos temas dos dEUS, que provavelmente os terão marcado.
O Meo Kalorama já anunciou o regresso garantido para o ano de 2025, mas terminou a edição de 2024 sem revelar as datas certas, algo que a organização promete vir a fazer “em breve”.