Cinco filmes do realizador José Álvaro Morais em cópias restauradas chegam ao cinema.
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Desaparecido em 2004, com apenas 60 anos, José Álvaro Morais ocupa um lugar à parte na história do cinema português. Pelo facto de ter sido sempre um desalinhado, pela peculiaridade de um cinema onde a sociologia, a antropologia e o histórico se vestiam sempre, em primeiro lugar, pelo lado humano, pelas liberdades narrativas e formais que sempre se permitiu. E foi o primeiro realizador português a vencer o prémio principal de um grande festival, no caso o Leopardo de Ouro de Locarno, com “O Bobo”, realizado em 1987.
É esta obra capital, e mais uma vez ímpar, do nosso cinema que, com quatro outros títulos do cineasta, praticamente toda a sua filmografia principal, chega de novo aos cinemas, em cópias novas, restauradas digitalmente pela Cinema Portuguesa. São eles “Ma Femme Chamada Bicho”, “Zéfiro”, “Peixe-Lua” e “Quaresma”.
“O Bobo” conheceu variadíssimos problemas de produção, que José Álvaro Morais acabou por integrar numa teia narrativa que se move entre várias dimensões. A ação decorre em Lisboa, em 1978, em torno de uma tentativa de adaptação teatral do romance de Alexandre Herculano que dá nome ao filme. Mas o passado do país e o presente do responsável pela adaptação vão-se interligando, entre a paixão por uma atriz que se chama emblematicamente Rita Portugal e um traficante de armas que poderá financiar o seu trabalho.
O filme, interpretado por alguns dos nomes maiores da representação à época entre nós, como Fernando Heitor, Paula Guedes, Luís Lucas, Luís Miguel Cintra, Isabel Ruth, João Guedes, Glicínia Quartin ou Rogério Samora, venceria em agosto de 1987 o Leopardo de Ouro de Locarno, num palmarés onde se encontravam autores como Edward Yang ou Alexnader Sokurov, mas só estrearia comercialmente entre nós em janeiro de 1991!
José Álvaro Morais sempre fora um homem independente. Nascido em Coimbra, em 1943, frequentou a Faculdade de Medicina de Lisboa, mas trocou-a pelo cinema, que estudou no prestigiado INSAS, o Institut National Supérieur des Arts du Spéctacle et des Téchniques de Diffusion, onde teve como professor, entre outros, um dos maiores realizadores belgas de sempre, André Delvaux. Em 1974, Abril chamou-o de novo ao seu país.
Depois de participar na realização da série da RTP “Cantigamente”, José Álvaro Morais estreia-se no cinema com o documentário “Ma Femme Chamada Bicho”, retrato hoje fundamental da pintora Maria Helena Vieira da Silva, contada pelo seu marido e também artista Arpad Szenes, que captou em Paris e na casa que o casal tinha em Yèvre-le-Chatel. Além da forma como a câmara de Morais capta a fina e profunda cumplicidade entre os dois, o filme inclui também a presença de Mário Cesariny, Sophia de Mello Breyner Andresen e Agustina Bessa-Luís!
Depois do longo processo de gestação de “O Bobo”, José Álvaro Morais só regressaria ao cinema sete anos depois, em 1994, com “Zéfiro”. O filme, nos seus 52 minutos, que correspondiam ao modelo de emissão televisiva que a RTP encomendou à produtora GER é, tal como a obra do seu autor no geral, dificilmente qualificável.
E é precisamente essa misteriosa deriva que torna fascinante a visão deste docudrama em forma de filme-viagem, sobre Lisboa, a sua localização atlântica, mas o apelo do sul, o Tejo e as planícies alentejanas, a herança árabe, no cruzamento de várias culturas. E de novo a fina-flor dos atores e atrizes portuguesas, mostrando o carinho e a confiança no olhar de José Álvaro Morais de gente como Luís Miguel Cintra, Fernando Heitor, Paulo Pires, Inês de Medeiros, Marcello Urgeghe ou Paula Guedes.
Por falar de atores, os dois filmes finais de José Álvaro Morais não seriam os mesmos, diríamos mesmo que o cinema português da época não seria o mesmo, sem o fantástico encontro criativo que o realizador teve com Beatriz Batarda, uma atriz para a qual começaram desde logo a faltar adjetivos.
Depois de “Zéfiro”, teve de se esperar de novo sete anos para ver novo filme de José Álvaro Morais. Mas valeu a espera. “Peixe-Lua” foi na altura e é ainda hoje um objeto fulgurante que passou pelo cinema português. Baseado num argumento original que o realizador escreveu com Jeanne Waltz, o filme centra-se na personagem de João, interpretada por uma Beatriz Batarda nascida em Londres a duas semanas do 25 de Abril e que, depois de algumas presenças menos significativas no cinema, já fora dirigida numa curta-metragem por Jeanne Waltz.
Aqui, Batarda é uma jovem que, quinze dias antes de casar, decide que já não o quer fazer. Mas desconfia que está grávida. Filha de boas famílias, mas sem ninguém com tempo para ela, volta-se como sempre para o rapaz pobre que nunca a deixara ficar mal, partindo numa viagem de descoberta, que a leva ao sul de Espanha. A paisagem, as terras, os cheiros, o vento, os caminhos, levam o espetador para uma viagem absorvente, inebriados pela presença mágica de Beatriz Batarda.
A atriz regressa para o que seria o último filme de José Álvaro Morais, “Quaresma”. E não só nos encanta de novo como encanta David, um jovem casado, com uma filha, prestes a partir para o estrangeiro com a família, mas que tem de regressar à terra natal para assistir ao funeral do avô. E é aí que conhece João, outra vez João, como se fosse a personagem do filme anterior, com esse rosto sublime de Beatriz Batarda. João está casada com um primo de David, mas a vida é assim, o cinema também é assim…
“Quaresma” teve estreia mundial na Quinzena dos Realizadores de Cannes, em maio de 2003. Demorou desta vez menos tempo a chegar às salas portuguesas, estreando a 3 de outubro desse ano. José Álvaro Morais deixou-nos prematuramente, a 31 de janeiro do ano seguinte.