O local onde o cinema foi inventado, em Lyon, foi alvo de obras de renovação nos últimos meses que ampliaram o espaço expositivo. O JN foi conhecer por dentro o restaurado espaço onde se respira cinema.
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É um dado por todos aceite que foram os irmãos Auguste e Louis Lumière os inventores do cinema como hoje o conhecemos: a exibição de um ou de um conjunto de filmes, projetados num ecrã, perante uma plateia composta por um público pagante. Tal aconteceu pela primeira vez, na sala do Grand Café, em Paris, a 28 de dezembro de 1895. Mas antes, os Lumière tinham dado à manivela o primeiro dos filmes que constituíram esse programa, quando filmaram, a 19 de março desse ano, a saída dos operários da sua fábrica de placas fotográficas, situada no centro de Lyon, uma das maiores cidades francesas.
É aí, na rua que se chama hoje precisamente Rua do Primeiro Filme, que se situa o Instituto Lumière, onde terminou há dias mais uma edição do Festival Lumière, onde se podem ver desde clássicos do cinema até às mais recentes novidades desta arte já centenária, cuja descoberta devemos aos dois irmãos. O instituto ocupa todo o quarteirão onde se encontrava não só a fábrica, de que resta um hangar, transformado em sala de cinema, como as duas casas, perfeitamente simétricas, onde viviam, numa delas, os dois irmãos e as suas famílias, e na outra os pais, Antoine e Joséphine.
É esta a única casa que sobreviveu e que alberga, desde 2002, o Musée Lumière. Encerrado há alguns meses para trabalhos de alargamento e renovação, o museu reabriu ao público nesta sexta-feira. Antes, o JN teve direito a uma visita guiada, que aqui se partilha com o leitor.
Os Lumière eram na origem uma família de poucos meios de Besançon, mas foi curiosamente a invenção das placas fotográficas, disponíveis para qualquer amador de fotografia, que originou a riqueza da família. Estava-se em 1881, e antes, quem quisesse uma fotografia, tinha de se dirigir a um retratista, posar alguns segundos sem se mexer, e esperar pelo resultado, não disponível para todas as bolsas. Com a invenção dos jovens Lumière, qualquer amador passou a poder realizar as suas fotos. O slogan da companhia ditava assim: “Apoiem no botão, nós fazemos o resto”.
No pico da atividade da fábrica dos Lumière, chegaram a ser produzidas cem mil placas por mês. São esses operários, aliás na sua esmagadora maioria operárias, que vemos a sair da fábrica nesse filme iniciático deste cinema que tanto amamos. Mas, ao contrário da maioria dos industriais da cidade, que vivam nas zonas ricas dos subúrbios de Lyon, a família Lumière decidiu construir a sua casa mesmo ao lado da sua empresa. E construíram-na de forma a mostrar bem o poderio económico que passaram a deter, potenciado ainda mais com a invenção do Cinematógrafo – “escrita pela luz” – mais perto do fim do século XIX.
Na prática, o filme já existia nos Estados Unidos, pela mão de Edison, mas a sua exibição era individual, numa máquina que se acionava com uma moeda, espreitando-se por um óculo um filme de cerca de um minuto. Edison inventou o filme, os Lumière inventaram a sua projeção.
O primeiro andar do Museu Lumière corresponde à zona mais “pública” da casa da família, o Grande Salão, a Sala de Jogos, onde existia um bilhar, a Sala de Jantar. É aí que o museu começa por mostrar um diaporama com várias imagens da história dos Lumière, apresenta uma maquete de como todo o quarteirão era no final do século XIX, podendo imaginar-se a dimensão da própria fábrica, e se expõem algumas das invenções anteriores aos Lumière, que deram origem ao seu cinematógrafo.
Objeto impressionante da coleção é o próprio projetor da primeira sessão de cinema, de dezembro de 1895. Aqui, importa abrir um parêntesis para falar de um português, o portuense Aurélio da Paz dos Reis, pioneiro do cinema português.
Porque razão os Lumière viraram as costas a Paz dos Reis
Fotógrafo amador e homem curioso, Aurélio da Paz dos Reis soube das primeiras projeções dos Lumière e decidiu viajar do Porto até Paris, para adquirir uma câmara aos dois irmãos. Na altura, a mesma máquina servia para filmar e para projetar. Sabe-se hoje que os Lumière recusaram a venda do aparelho, o que não desanimou o portuense, que voltou à sua cidade com um dos outros aparelhos que começaram a surgir, com ele realizando, ao que se sabe, 33 pequenos filmes, de que apenas sobreviveram 4: “Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança”, inspirado no primeiro dos Lumière, “Feira de Gado na Corujeira”, “O Vira” e “No Jardim”.
O nosso guia explica-nos o que se terá passado. “Paz dos Reis chegou demasiado cedo, porque em 1896 eles ainda não vendiam os aparelhos”, diz-nos. “Em 1896 houve 800 projeções clandestinas, que imitavam os Lumière, umas que funcionavam, outras não. Os Lumière faziam questão de dizer às pessoas para terem atenção, ao comprar um bilhete, se era realmente uma sessão organizada pela Sociedade Lumière. Eles recusavam vender o aparelho, de forma a explorarem-no eles mesmo.”
Foi só mais tarde que os Lumière decidiram fabricar um kit do Cinematógrafo para vender, porque tiveram de admitir que não eram capazes de assegurar todas as projeções. Mas, entretanto, muitas outras companhias fabricavam já as suas câmaras e os Lumière deixaram de as produzir em 1901.
O primeiro andar do museu termina quando o cinema passa de uma dimensão amadora e se torna profissional. Podemos ver aparelhos de 1908 e de 1912 para as primeiras filmagens profissionais. O aparelho Gaumont que se encontra em exposição foi fabricado para a rodagem do “Fantômas”, de Louis Feuillade, e ao lado está uma das seis câmaras que a Pathé vendeu para Griffith rodar “Intolerance”, onde se pode verificar o dispositivo que permitiu ao pioneiro americano filmar panorâmicas. É ainda no primeiro piso que os visitantes vão poder ver vários dos 1425 filmes do catálogo dos Lumière.
A passagem para o segundo piso, reservado à família ou a algum convidado especial, faz-se por uma enorme escadaria, iluminada por um gigantesco candelabro e ladeada por duas pinturas do pai dos Lumière, Antoine. O quarto dos pais encontra-se reproduzido, podendo verificar-se a modernidade, para a época, com que a família vivia, havendo mesmo um aparelho telefónico. A cozinha é agora a loja do museu, e no segundo piso podem ainda ver-se a funcionar alguns dos aparelhos que fazem parte da história do pré-cinema, como o zootrópio, conferindo-lhe um lado mais vivo e lúdico.
É esse o objetivo principal desta renovação que agora se conclui, abrindo-se as portas hoje aos seus novos visitantes. Uma visita obrigatória para quem passar por Lyon e goste desta arte e desta forma de expressão das imagens em movimento, que devemos ao espírito inventivo e pioneiro dos irmãos Lumière.