"Tempo contado", um dos livros essenciais da obra de J. Rentes de Carvalho, em registo de diário, conta com uma nova edição.
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Em Portugal, o género diarístico sempre teve, valha a verdade, mais cultores do que mestres. Muitos escreverem enfatuadamente sobre o seu dia a dia, mas poucos capazes de alcançar a bitola da excelência, portanto.
Mais de um século depois, os diários de Manuel Laranjeira - o genial poeta e médico espinhense que plasmou o seu infortúnio sem fim nas páginas do seu martirizado diário - continuam a ser a exceção que confirma a regra.
Tal acontece, antes de mais, porque a figura do leitor a espreitar por cima do ombro parece estar demasiado presente junto de quem escreve - como é evidente nos variados volumes dos "Cadernos de Lanzarote", de José Saramago -, o que retira de modo irremediável o grau de confessionalismo e partilha autêntica que faz da escrita diarística um exercício tão sedutor.
Dessa(s) armadilha(s) escapa com mestria "Tempo contado",volume de J. Rentes de Carvalho (e também o título do seu blog pessoal) com o qual assinalou, em meados da década de 1990, a sua entrada oficial na designada terceira idade.
Entre Portugal e Holanda, sem nunca se perder em desvios esconsos ou atalhos manhosos, o autor de "La coca" entreabre-nos a porta do seu quotidiano na medida exata. A frincha que nos permite vislumbrar é (mais do que) suficiente para que nos seja possível aceder à sua visão, frequentemente amarga, sobre a evolução dos costumes nas respetivas sociedades.
Mas é no modo como Rentes de Carvalho faz da narração dos episódios soltos do quotidiano muito mais do que um exercício contabilístico da mera soma dos dias que reside a grandeza deste textos.
Através de uma escrita enxuta, o agora nonagenário autor adota uma plêiade de registos que convergem para o mesmo ponto: a falta de vontade em trabalhar para a posteridade, que encontramos em tantos diários similares, por parte de escritores obcecados em fazer passar com demasiado esforço a melhor versão de si mesmos, ainda que totalmente fictícia ou, no mínimo, inverosímil.
Impaciente por vezes, rezingão outras tantas, mas sempre humano até à medula, Rentes de Carvalho desfia episódios com os quais o leitor se vê transportado para o lugar de confronto e questionamento próprio de quem sempre assumiu o seu destino sem medos ou concessões.