Ricardo Araújo Pereira: "É característico dos populistas não terem princípios"
"Isto é gozar com quem trabalha", programa da SIC e o mais visto da TV nacional, volta hoje a ter assistência em estúdio.
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A personalidade favorita dos portugueses volta hoje a ter portugueses em estúdio para assistir ao programa mais visto da TV nacional. Modesto, Ricardo Araújo Pereira diz ao JN, por escrito, que não faz "ideia nenhuma do que o público quer", embora toda a gente saiba o que anda aqui a fazer: comédia modulada pela carpintaria da palavra, mesmo que assegure que o seu trabalho seja como o de um canalizador. Mas deixa um aviso sério sobre as consequências da covid-19. Para muitos, não vai ficar tudo bem - "Não dá uma boa hashtag, mas é mais honesto". Ao contrário dos populistas, que embora forneçam "muita matéria ridícula", não tem princípios.
Foi considerado, num estudo da Marktest, a personalidade favorita dos portugueses. Essa escolha dá-lhe vontade de rir?
Claro. Vê-se bem que o estudo não foi feito em minha casa.
A pandemia trouxe uma pandemia paralela: a atualidade tornou-se monotemática. Fazer humor nestas circunstâncias foi mais penoso?
Bastante mais. Só havia um tema e era particularmente delicado. Além disso, ficámos sem público, sem acesso ao arquivo, sem contacto direto com o nosso editor de imagem e perdemos a possibilidade de trabalhar em grupo. Fez-se o que se pôde.
Já tinha, antes da covid-19, ouvido ou usado as palavras desconfinar ou desconfinamento?
Digamos que não eram palavras de uso corrente, não. E também desconhecia o conceito de "etiqueta respiratória". Constato agora que, durante anos, respirei como um selvagem.
Mas mesmo sem público, conseguiu manter o interesse dos portugueses no programa. O regresso à normalidade é uma coisa boa, ou transformou-se em nova preocupação, num novo desafio a superar?
Ambas. O regresso à normalidade (ainda que a uma normalidade possível, com muitos lugares vazios na sala) é uma boa notícia. Mas fazer um programa destes é sempre um desafio a superar. Trata-se de uma pessoa sentada a uma secretária a resmungar. Não é propriamente o espectáculo mais televisivo. Que, semana após semana, consiga ser o programa mais visto da televisão portuguesa continua a ser para nós um mistério.
Faz comédia para si ou para o público?
Fazemos aquilo a que achamos graça e esperamos que o público também ache. Acho que é a única maneira, até porque não fazemos ideia nenhuma daquilo que o público quer.
Seria possível em Portugal fazer um programa como o seu todos os dias? Matéria política, por exemplo, não falta.
Acho que não há material para fazer um programa diário. Pelo menos, com meia hora de duração. Mesmo nos Estados Unidos, o Daily Show, ao contrário do que o nome indica, não é diário: só é transmitido de segunda a quinta.
Se falarmos dos populistas, estamos a dar-lhes espaço. Se não falarmos, não fazemos qualquer contraditório. Se o humor pode ser também intervenção, o que pode fazer um cómico para desmascarar um populista?
Em primeiro lugar, talvez seja importante deixar claro que a tarefa de desmascarar um populista é, antes de mais, dos seus adversários políticos e do jornalismo. A tarefa do humorista é fazer rir. E não há dúvida de que os populistas fornecem muita matéria ridícula. Isso não significa, no entanto, que o populista fique "desmascarado" no sentido que se costuma atribuir à palavra. Até porque é característico dos populistas não terem propriamente princípios. Por isso, apontar-lhes as incoerências, por mais flagrantes, não tem exactamente o efeito pretendido de "desmascarar". Durante o primeiro mandato de George W. Bush, Jon Stewart era considerado o mais acutilante crítico do presidente. Bill O"Reilley, que tem o perfil das pessoas que, quando se fala de sátira política estão mais interessadas em política do que em sátira, e por isso costumam atribuir ao humor um poder que ele não tem, convidou Stewart para o seu programa e, lamentando o seu suposto poder, disse-lhe: "Sabes o que é triste? É que tu vais ter um papel decisivo nesta eleição." Depois chegou a eleição e Bush foi reeleito com mais 10 milhões de votos do que aqueles com que tinha vencido a primeira eleição. Escuso de lembrar o que aconteceu nas últimas eleições, em que o candidato mais intensamente "desmascarado" da história foi eleito presidente da América. Mas os humoristas produziram excelente comédia sobre ele. Ou seja: fizeram o seu trabalho muito bem.
Tem o programa da SIC, escreve as crónicas na Visão e na Folha de São Paulo e ainda aparece de vez em quando na Rádio Comercial. É para fazer exercício, é vício criativo ou é simplesmente um trabalho que executa, como quem tem uma rotina?
É o meu trabalho. Exactamente como acontece com um canalizador que faça biscates aqui e no Brasil. Imagino que haja alguns.
O que foi, em termos pessoais, o melhor do regresso à normalidade?
Na verdade, a minha vida pessoal nunca deixou de ter uma certa normalidade, porque normalmente eu já saio pouco de casa, o que deixa claro que a metáfora "estamos todos no mesmo barco" é um pouco frágil. Talvez estejamos todos no mesmo barco, mas uns estão confortavelmente instalados nos camarotes e continuam a trabalhar como dantes, enquanto outros estão fechados na sala de máquinas a levar com a fuligem na cara. Para esses, imagino que o estribilho "vai ficar tudo bem" seja até um pouco cruel. É fundamental dar esperança às pessoas, mas a falsa esperança é outra coisa. Em princípio, para muita gente, não vai ficar tudo bem, ou vai levar muito tempo até que fique tudo bem. Talvez seja melhor dizer-lhes que, embora não vá ficar tudo bem, se vai tentar que fique o menos mal possível. Bem sei que não dá uma boa hashtag, mas é mais honesto.
* Ricardo Araújo Pereira respondeu às questões usando a antiga ortografia