Peça de Shakespeare é interpretada por atores surdos na encenação de Marco Paiva. Está em cena no Teatro Carlos Alberto, no Porto, até ao próximo domingo.
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Foi precisamente por ver em Shakespeare um “puro lugar de retórica” que Marco Paiva decidiu calá-lo, construindo, na sua versão de “Ricardo III”, “uma poética a partir de um lugar mais visual e musculado”. Para isso, contou com um coletivo de atores surdos, espanhóis e portugueses, que se exprimem em língua gestual portuguesa e língua de signos espanhola.
Coproduzido com o Teatro Nacional São João, o Centro Dramático Nacional de Madrid ou o Teatro D. Maria II, o espetáculo estreou em Madrid e chega agora ao palco do Teatro Carlos Alberto, no Porto, onde permanece até domingo, com récitas diárias.
Há em “Ricardo III” dois objetivos que se entrelaçam, explica o encenador. “Dar visibilidade a uma comunidade e a uma língua oficial que são marginalizadas”. E, nesse passo, trazer novas energias ao teatro e libertá-lo de uma “prática dogmática, muitas vezes aprisionada na dependência excessiva da palavra dita e do seu entendimento.”
Marco Paiva não desconhece que a história das vanguardas do século XX passou justamente por questionar essa dependência e aprisionamento do teatro relativamente ao texto, mas é certeiro quando diz que essas constelações teatrais que produziram novas relações com o texto não estão espelhadas na maior parte das programações. Há uma indesmentível inovação no primeiro espetáculo feito no país apenas com língua gestual, já a modificação do género do protagonista (Ricardo III interpretado por Ângela Ibáñez) é hoje algo bastante comum – das cinco encenações que vimos de “As criadas”, de Jean Genet, por exemplo, em apenas uma as personagens eram encarnadas por mulheres.
Plástico, dinâmico e surpreendente, o espetáculo concentra-se na ascensão e queda do rei ficcional, alguém capaz de “dar lições ao malvado Maquiavel.” Ricardo III mata e calunia todos os que se atravessam no seu caminho para a coroação, incluindo crianças, e acaba a prometer o seu reino por um cavalo, antes de tombar em batalha.
O texto passa em legendagem, mas tudo se foca nos gestos e expressões dos atores surdos, que trazem ao palco esse espanto capaz de “recolocar o teatro na esfera do indefinido, do estranho, da dúvida e do recomeço”.