Quase um quarto de século depois da publicação em língua inglesa, o romance "Insubmissos" tem, finalmente, uma edição em Portugal. Ainda sem saber na altura que "Os últimos cabalistas de Lisboa" seria um best-seller internacional, Richard Zimler relata o percurso de descoberta de três personagens que buscam a redenção num mundo dominado pelo medo da sida.
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A publicação deste livro é uma forma de premiar os seus leitores quando completa 30 anos no país?
Não pensei nisso, embora, claro, lhes esteja grato. Este é um livro que me torna vulnerável, porque aborda um período traumático da minha vida. A decisão teve que ver com a pandemia. Percebi que, agora, os leitores iam compreender as personagens do livro e o terror que a sida provocou há poucas décadas. Quando a doença foi dominada, nunca pensei que viesse assistir a uma nova pandemia.
Como foi o regresso a um livro escrito há 25 anos?
No início, tive medo. Já não o lia desde então mas fiquei aliviado ao fim de 30 páginas. Apesar de ter alguns defeitos, fiquei orgulhoso.
Fez muitas alterações?
Não, porque o livro foi escrito por um Richard Zimler que já não existe. Alguém que viveu a pandemia por dentro devido à perda do irmão. Quis respeitar as escolhas do Richard anterior.
Escrever ajudou-o a mitigar a dor da morte?
Nem por isso. Ainda hoje, a sua morte faz-se sentir em muitos momentos. Posso estar a andar na rua feliz da vida ou a ver o pôr do sol e sinto a sua ausência. É como se sentisse um murro no estômago. Penso na injustiça de alguém falecer com 35 anos, quando tem a vida pela frente...
As ligações autobiográficas do livro são óbvias, mas até que ponto é redutor focarmo-nos delas?
É natural que um leitor procure convergências. Afinal, o protagonista também é americano, vem viver para Portugal e sofre vários choques. Mas, por outro lado, há muitos elementos que não são autobiográficos.
À medida que o escritor ganha experiência vai colocando mais camadas entre a realidade e a ficção?
Talvez, mas, se pensarmos em Philip Roth, vemos que até ao fim ele usou a própria vida nos livros. No meu caso, é uma reciclagem. Há temas que aparecem e desaparecem, quase contra a minha vontade. A questão da identidade, por exemplo. Como a conquistamos, como mudamos a nossa identidade.
Apesar da realidade dura que trata, é um romance que contém esperança.
Para mim, escrever um romance deprimente não é opção. Não vejo qual o propósito de tirar a esperança das pessoas. Este livro é um grito de paixão, esperança e necessidade de viver.
É um livro de iniciação. Foi-o também para si?
É uma consequência de "Os últimos cabalistas de Lisboa". O meu agente enviou-o para 24 editoras e todas o rejeitaram. Como me pareceu óbvio que os americanos não estavam interessados numa história passada em Portugal em 1506, lembrei-me que podia recorrer à minha vida para o segundo romance. Na verdade, tomo decisões que talvez sejam ilógicas. Se tivesse em conta o mercado, não teria escrito o livro. Nunca escrevi a pensar no marketing.
Depois dessas recusas, estava muito descrente quando escreveu o livro?
O efeito da recusa teve um grande impacto em mim. Entrei numa depressão profunda. O que me salvou foi uma amiga que me desafiou a escrever um novo livro.
Arrepende-se de não o ter publicado mais cedo?
Há leitores que me dizem que foi pena, porque teria sido uma ajuda para muitas pessoas. Mas é preciso ver que estava numa posição vulnerável, porque não tinha cidadania portuguesa e se o Ministério da Administração Interna não me renovasse o visto teria que sair do país. Escolhi a opção menos dolorosa.
É uma pena que esta doença não vá mudar o nosso comportamento
Descobriu novos hobbies no confinamento?
Normalmente começo a escrever às nove horas, mas este ano não. Aproveitei para ver as notícias ou ler e só à tarde é que escrevia. Tenho os meus hobbies tradicionais: faço crochê e vejo os jogos da NBA na televisão. A minha vida é igual à de toda a gente. A parte mais difícil é viver num nível de tensão constante.
Mais do que a pandemia, teme o que virá depois?
Depois de toda a investigação que fiz sobre a História americana e portuguesa, posso dizer que perdi a confiança na memória das pessoas. Quem fez uma guerra no Vietname, como os EUA, jamais poderia ter uma guerra no Iraque ou Afeganistão. Há quem pense que vamos mudar imenso devido a tudo o que estamos a passar. Tenho imensas dúvidas. Se tivermos uma vacina em janeiro, ninguém se vai lembrar do que vivemos este ano. Pelo menos de uma forma visceral. É uma pena que o nosso comportamento não vá mudar depois disto tudo. Podíamos passar a ter mais empatia e solidariedade, mas não tenho muita confiança.
A derrota de Donald Trump foi uma das poucas boas notícias de 2020?
Ah, sim! Entrava em depressão só de pensar que ele ainda podia ganhar. Fiquei feliz com a vitória de Biden, mas é só um começo. Vão ser necessários oito a 12 anos para refazer o país. O Trump e os seus aliados destruíram a agência fiscalizadora do ambiente, tentaram desmantelar o sistema educativo, tirando dinheiro às escolas públicas para dá-lo às privadas... É muito fácil destruir, mas refazer leva muito tempo. Temos que criar um país de mais empatia com uma rede protetora. Na Europa ela existe. Tenho amigos com a minha idade que não se podem reformar porque perdem os seguros. É desastroso o caminho que os EUA estão a seguir, pois estão a criar um fosso gigantesco entre as pessoas mais ricas e as mais pobres. É uma receita para o desastre. Podemos acabar com níveis de criminalidade iguais aos do Brasil.
Os Estados Unidos são vistos como a terra das oportunidades, mas no seu caso o sonho da escrita concretizou-se em Portugal. Mais importante do que o espaço onde vivemos, acredita que, em última instância, é a nossa vontade que conta?
É certo que a sociedade norte-americana é mais dinâmica, as pessoas são mais próativas. Em Portugal e na Europa são menos. Arriscam menos. Embora tenha mudado um pouco nos últimos anos. Tudo depende da nossa vontade e garra. Eu recusei abandonar os meus sonhos. Apesar da rejeição de 24 editoras, não o fiz. Porquê? Não sei. Se calhar, sou mais forte do que penso. Há muita gente que trai os seus sonhos. Isso é péssimo. Um dos aspetos mais negativos do governo de Passos Coelho era o de que as pessoas se deviam contentar com o seu pequeno trabalho a pôr o parafuso na máquina e voltar para casa a seguir. Essa mensagem de que não podemos sonhar é abominável. As pessoas devem seguir as suas paixões.
Quando o veremos de volta aos romances?
Estou a escrever um romance sobre a Inquisição há bastante tempo. Passa-se em Castelo Rodrigo no século XVII. Já escrevi 700 páginas, mas vai chegar às 800 ou 900. Se calhar, vou ter que dividi-lo em dois volumes, caso a editora concorde.