Espetáculo "SuperNature" chega à Netflix. Nada muda no mundo do comediante britãnico.
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Foi com o espetáculo "SuperNature" que Ricky Gervais atravessou os anos da pandemia, numa digressão acidentada que desaguou num especial para a Netflix.
Ao fim de dez minutos, entre o crepitar contínuo de gargalhadas e aplausos, desconfia-se que Gervais está ali para construir uma performance que é um jogo de espelhos. Neste jogo, o comediante não está mesmo nada ralado, nem se deixa afetar, não senhor, nem pensar, com comentários negativos nas redes sociais; nem com o politicamente correto; nem com a igualdade de oportunidades e de visibilidade das mulheres; nem com a fluidez de género.
O ponto central de "SuperNature" é todavia outro, mesmo que o tom sofra escassas alterações. Num estilo ofegante, Ricky Gervais regressa a um dos seus temas prediletos: a absoluta inexistência de Deus, fantasmas, reencarnação, Céu. O ateísmo derrama para tópicos subsequentes, sobretudo quando passa pelas origens da sida e pela ínfima fração da existência de um ser humano no grande filme do Universo. Perora sobre as virtudes e defeitos de gatos e cães, passa pelo aborto, por Hitler, pela obesidade, pelo médico.
Gervais retoma no último terço de "SuperNature" aquilo que não o rala mesmo mesmo nada: o que uma sociedade pode, em 2022, considerar ofensivo no humor. Antes e depois de um parêntesis para defender os direitos dos transexuais, produz um aguaceiro de graças sobre chineses, professores pedófilos e, sim, transexuais, que soariam embaraçosas num recreio da preparatória em 1982.
Só o final, com um trio de histórias da infância, empresta proximidade e humanidade à performance. Por momentos, há crueza sem amargura. O que sobra é um misantropo autossatisfeito e ressabiado, ofendido com o facto dos outros se ofenderem, numa conversa mole pejada de clichés, frequentemente boçal.
"SuperNature" é o espetáculo de um tipo de 60 anos que ainda ganha fortunas a fazer de conta que não se está a queixar que o comboio do progresso social e humano passou e o deixou no cais de embarque.
Ricky Gervais: SuperNature
2022