“Descida da cruz”, pintura sacra do séc. XIX de Domingos Sequeira, pode ser vendida em Espanha. É alegada “incúria” e “irresponsabilidade” da Direção-Geral do Património Cultural na sua exportação. Governo faz “todos os esforços” para resgatar a obra. Mas ninguém arrisca prognósticos.
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“Descida da cruz”, de Domingos Sequeira, uma obra emblemática de um dos mais importantes pintores portugueses do século XIX, estará à venda numa galeria em Espanha, com um valor atribuído de 1,2 milhões de euros. A saída foi possível devido a uma “falha” da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), já assumida pelo Governo. A tutela está a procurar soluções para trazer a pintura de novo para Portugal, mas não há ainda resultados conhecidos – e o seu resgate não está garantido.
A notícia foi primeiro avançada a 26 de janeiro, pelo “Expresso”, que revelou que a “Descida da cruz” estará à venda em Espanha, após uma autorização de saída da agora extinta DGPC. O requerimento para exportação temporária e eventual venda da obra que estava na posse do descendente do duque de Palmela Alexandre de Souza e Holstein tinha como destino a Galeria Colnaghi, em Madrid.
A exportação foi ainda mais insólita, por suceder apesar de o diretor do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), Joaquim Caetano, ter emitido um parecer negativo, defendendo a necessidade de se iniciar “de imediato, o processo de classificação da pintura como Bem de Interesse Nacional, impedindo a sua saída de território português”.
É “gravemente lesivo”
Por motivos que ainda não foram clarificados, a classificação não chegou a avançar e o quadro terá mesmo saído do país, motivando uma carta aberta ao Governo por parte de 12 historiadores de arte, museólogos e arqueólogos nacionais, que exprimiram a sua “indignação” por esta ocorrência “gravemente lesiva do património português”.
Ao JN, uma das responsáveis da missiva, a historiadora Raquel Henriques da Silva, diz acreditar que a situação foi uma “incúria” e uma “irresponsabilidade”. O próprio ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, chegou a invocar publicamente uma “lamentável falha dos serviços” por parte da DGPC, não voltando depois a pronunciar-se sobre o tema.
Por seu turno, a secretária de Estado da Cultura, Isabel Cordeiro, garantiu na segunda-feira estarem em curso “todos os esforços” para conhecer as “eventuais condições de compra” da obra, adiantando que o assunto foi entregue à Museus e Monumentos de Portugal, esperando “desenvolvimentos para muito breve”.
Museu e Monumentos lidera agora processo
Da nova empresa Museus e Monumentos de Portugal, criada a 1 de janeiro de 2014 e dirigida pelo ex-presidente do Teatro Nacional de São João, Pedro Sobrado, o JN obteve a confirmação direta de que esta entidade recebeu “mandato da tutela para desenvolver o processo de contacto com os proprietários das obras de Domingos Sequeira”.
Porém, não se compromete com a cronologia do processo de tentativa de reaquisição do quadro, dizendo apenas não haver “qualquer informação suscetível de ser partilhada” no momento.
Para a historiadora Raquel Henriques da Silva, embora seja “saudável que as responsabilidades sejam apuradas”, prioritário agora é recuperar a obra. Sobre isso, congratula a resposta “imediata” da secretária de Estado da Cultura, mas lembra que a icónica pintura do séc. XIX tem dono: “Claro que os proprietários podem ou não participar na boa decisão”.
Museu de Arte Antiga quer os quatro quadros
“Descida da Cruz” faz parte da série emblemática de quatro pinturas que Domingos Sequeira executou nos últimos anos de vida, em Roma, onde morreu em 1837.
Com criação estimada em 1827, a composição de cariz religioso representa o local do calvário de Cristo após a retirada do corpo da cruz. A série conta ainda com “Ascensão”, “Juízo Final” e “Adoração dos Magos” – este último é o único já na posse do Museu Nacional de Arte Antiga, comprado por 600 mil euros numa campanha pública de crowdfunding em 2016.
O quarteto do precursor do movimento romântico na arte portuguesa “tem um valor excecional”, diz ao JN o historiador Vítor Serrão, “e o Estado tem todo o interesse em reunir as quatro obras”.
Além da “Adoração dos Magos”, o MNAA tem na sua posse os desenhos preparatórios e pretende deter as quatro pinturas para as exibir numa sala que dedicará a Sequeira. Tudo indica que o Governo está a tentar adquirir não só o quadro exportado, mas também os dois restantes.