"A Menina Invisível" marcou o regresso aos romances de Rita Cruz, depois do bem recebido "No País do Silêncio". Na derradeira parte da entrevista, a autora fala sobre a relação próxima que faz questão de manter com Portugal e os portugueses, apesar de viver do outro lado do Mundo.
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É através das palavras que Rita Cruz vai entretecendo e aprofundando a sua relação com um país no qual já não vive há mais de uma década, mas que, devido às suas gentes e também à literatura, continua a considerar seu.
Embora a estreia em livros só tenha ocorrido há um par de anos, os livros e a escrita sempre fizeram parte do seu núcleo essencial, cumprindo o desejo íntimo de partilhar com quem a lê "uma voz e uma verdade que sejam minhas e não outrem".
À distância de tantos milhares de quilómetros, como vê Portugal e os portugueses?
Os portugueses são seres humanos, a maior parte nascidos numa quadrícula do planeta Terra à qual os mesmos humanos chamam Portugal. Carregam nos tecidos do corpo e no núcleo das células uma herança histórica, falam uma língua, têm tendência a ter cabelos e olhos escuros, pele adaptada ao sol... mas nem sempre, porque, como todas as quadrículas do planeta Terra, esta quadrícula chamada Portugal também está em mutação. O ser que a habita e que se considera português - importante ressalva, porque pode habitá-la sem se considerar português e considerar-se português a habitar uma outra quadrícula - fala, como disse, uma língua específica, na qual vive uma História, uma forma de comer, de ver a família e as amizades, de sentir falta do bacalhau e do pastel de nata. Dizem que é do fado, mas é tanto do fado como é do Benfica, ou seja, pode ser ou não ser. Também se diz que é acomodado, que é amigo, que é hospitaleiro, que tem brandos costumes fora de casa e é violento dentro dela, que é atrasado ou avançado, que é machista, que é corrupto ou tolerante da corrupção, que desdenha o que tem e se deslumbra como o que vem de fora... mas nada disto é imutável, nada disto é essência. Tudo isto são despojos das experiências a que um grupo é sujeito. Na essência, tal como eu o vejo à distância, Portugal é uma quadrícula do planeta e o português um ser humano como outro. Mas coberto de despojos, é um país com dificuldade atual em gerir o património que tem, em valorizar o que deve valorizar, às turras com heranças histórias que ora o desvalorizam ora o sobrevalorizam, habitado por seres humanos que falam a minha língua e experienciam a vida a partir dos limites, inseguranças, hábitos e tendências que este contexto lhes oferece.
Por mais anos que viva fora do seu país, ele continuará a ser o objeto central dos seus livros?
Talvez sim. Pelo menos por enquanto. Tenho dificuldade em escrever sobre temas que não entendo, e não entendo tão bem outras quadrículas do planeta Terra como entendo aquela que Portugal ocupa.
Tem uma relação muito especial a vários títulos com a língua portuguesa, a que chama de casa. O que representa concretamente o Português para si?
A língua portuguesa é a única língua em que eu sei moldar as palavras. Consigo contar histórias noutras línguas, mas só em Português consigo que uma palavra pegue num leitor e o leve exatamente na direção que eu quero que ele vá. Isto é muito importante para mim porque a escrita, a reprodução da vivência em palavras certas é coisa que me persegue desde sempre. Vivo bem num país que fala outra língua, tenho vontade e curiosidade em continuar a aprender línguas novas que me permitam aprofundar o conhecimento da tapeçaria humana do planeta, mas em tudo isto sou espectadora. Preciso sempre regressar a casa e deitar-me no leito da minha língua.
Por falar em Português, quais considera serem ainda e sempre os seus principais artífices ou mestres?
Houve uma influência tremenda na minha adolescência que foi Vergílio Ferreira. Talvez por ter sido a primeira, foi aquela paixão literária que mais me marcou. Lembro-me de lhe emular a escrita nos meus diários da adolescente e nos primeiros, imberbes e dispensáveis rabiscos literários. Não me lembro de outro autor que me tenha arrebatado tanto, pese os seus livros não serem, hoje em dia, os que levava para uma ilha deserta. Não há amor como o primeiro, já diz o ditado. De resto, não consigo apontar um mestre. Aprendo com tudo o que leio, bom ou mau. Estou constantemente atenta à forma como um escritor ou escritora tece uma história, escreve uma frase, me consegue emocionar, ou enganar, ou surpreender... ou não. Vejo e anoto. Mas quando escrevo, estou apenas atenta à história que quero retirar de mim, com uma voz e uma verdade que sejam minhas e não outrem. Pese tudo o que leio, descodifico e anoto, o que não vier realmente de mim, não fica.
A influência do audiovisual faz com que muitos escritores de hoje sigam esses ditames, não só através do encadeamento narrativo mas também pela visualidade das descrições. Será sempre uma resistente dessa via?
Não de todo. Não resisto a nenhuma forma de contar uma história e transmitir sentimentos que se mostre um bom veículo para retirar de mim o que quero dizer, para abanar o leitor, para o trazer até ao universo que construo para ele. Aliás, creio que os meus livros acabam até por ser bastante visuais, não para acompanhar tendências, mas talvez porque também eu tenha influências audiovisuais dentro de mim que não calo quando escrevo. Porque são tão minhas, como as palavras que escolho para trabalhar.
O que a literatura oferece que mais nenhuma outra forma de entretenimento é capaz de assegurar, em seu entender?
A literatura é uma experiência íntima como nenhuma outra. Outras formas de entretenimento contam histórias, ensinam, arrebatam, confrontam... como a literatura. Mas nenhuma delas se passa no silêncio da imaginação solitária, no mais profundo dela, na quietude da reflexão. Há um descanso e uma intimidade únicas à literatura que, pese serem de facto entretenimento, a tornam alguma coisa mais. Que mais? Não sei... vou continuar a pensar nesta pergunta ao longo da vida porque ainda nunca lhe consegui dar a resposta que me satisfaz, que vai de encontro ao que sinto exatamente.
A sua estreia em livro aconteceu apenas há pouco mais de dois anos. Era um sonho eternamente adiado?
Creio que em tempos o foi, mas depois, como tantos outros sonhos, foi esquecido. Não adiado, mas esquecido mesmo. A vida foi criando os seus contornos e limites, deixando sonhos inúteis de fora, com naturalidade, sem tristeza, que sou demasiado consciente dos meus privilégios para me dedicar a ela. Estudei, trabalhei nas áreas em que me formei, tive dois filhos com idades próximas, a vida tomou conta dos dias. Foi só por acaso que escrevi o meu primeiro livro. Porque tive, inesperadamente, tempo para o fazer, e quis oferecer à minha família e amigos qualquer coisa feita por mim - e, como disse na nota que fiz acompanhar a edição de autor do "No País do Silêncio", não sei fazer mais nada que não seja escrever.
Enquanto profissional da fisioterapia tem trabalhado de perto com refugiados. Tem sido uma aprendizagem humana valiosa que se reflete de algum modo na escrita?
Como fisioterapeuta acompanho uma clínica de convalescença para refugiados na Malásia, mas antes de ser fisioterapeuta fui cooperante internacional. Esse trabalho, como já o disse noutros lugares, moldou-me como pessoa. Passei pela Colômbia, onde acompanhei defensores de direitos humanos e comunidades de camponeses deslocados pela guerra, estive no Afeganistão depois da invasão estadunidense e no Sri Lanka depois do Tsunami de 2004. Acompanhei situações delicadas de violações de direitos humanos e sociedades instáveis, brutais. Aprendi a ver o que é invisível, conheci-o, e descobri-me a mim nele. Tudo o que vivi e vivo está na minha escrita, na forma como vejo o mundo que vivemos, os seres que o habitam. Sim, está tudo lá. Se não tivesse vivido tudo isto, a minha escrita não seria esta, mas outra.
Nos últimos tempos têm-se sucedido os exemplos de autores célebres entretanto desaparecidos cujos livros são vítimas da chamada "cultura de cancelamento", em virtude de comentários ou expressões suscetíveis de ofenderem os ditos mais sensíveis. É de censura que se trata, em sua opinião?
É censura, claramente. Os livros são documentos históricos, foram escritos de determinada forma porque assim era permitido e aceite, porque assim era o pensamento, e é importante que o saibamos. Que o discutamos. Foi assim, a evolução do pensamento, era assim, que as coisas eram ditas e feitas. A cultura do cancelamento não é muito diferente da eliminação de personagens incómodos numa fotografia. Creio também que é relevante que pensemos porque se faz... é para proteger as crianças e os adolescentes, ou é porque se teme que esses escritores deixem de ser lidos e, consequentemente, deixem de dar lucro? Pensemos, sejamos críticos e deixemos de temer olhar para a história tal como ela foi, e não de forma esterilizada e infantilizada. É perigoso, de resto, fazê-lo dessa forma.
Há quem defenda que um escritor não volta a experimentar a liberdade dos primeiros livros. Agora que está a escrever o sucessor dos dois primeiros romances, sente que é mesmo assim?
Para mim, infelizmente, é verdade. Acredito que cada escritor seja uma entidade única e lide com a escrita e o ruído fora dela de forma própria, mas eu caio, de facto, no cliché. Estava sozinha, no meu primeiro livro (e no segundo também, porque o escrevi quase todo antes do primeiro estar publicado), mas agora tenho sempre demasiada gente à minha volta, no perímetro do meu quarto, no café, no parque, sempre vozes e opiniões, sempre olhos por cima do ombro. Muito aborrecido, de facto, e eu ainda sou uma ilustre desconhecida! Mas mesmo assim, são muitas as vezes que já tenho de fechar o computador e esperar alguns dias, até sacudir todas essas presenças da minha beira. Mas elas voltam sempre... creio que estou demasiado disponível para as aturar e ainda não aprendi a enxotá-las do perímetro criativo.