O GUIdance - Festival Internacional de Dança Contemporânea de Guimarães, inaugurou a vertente de espetáculos esta quinta feira com "Al fondo riela (el otro del uno)", de Rocío Molina, num Centro Cultural Vila Flor muito preenchido e assistido por muitos espanhóis.
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Rocío Molina não dança, Rocío Molina convoca. No corpo, transporta séculos de flamenco e uma inquietação que o estilhaça em múltiplos reflexos. Em "Al fondo riela (el otro del uno)", segunda parte da "Trilogía sobre la guitarra", não procura a unidade, mas sim o confronto da impossibilidade de ser apenas uma.
O palco é território de embate, de duplicação e desencontro, onde a bailaora se defronta consigo mesma, com a sombra, com a alteridade. Como no poema "Negra sombra", de Rosalía de Castro, com a referência "sombra que sempre me assombras".
É um espetáculo onde tudo está em tensão: luz e escuridão, melodia e rasgo, contenção e delírio.
A guitarra, aqui, não é uma, mas duas, cada uma puxando Molina para um extremo distinto. A delicadeza e a vertigem. A precisão matemática e a improvisação crua. Entre eles, ela, furiosa, inquieta, feminina e andrógina, vestida de negro como quem carrega o peso de uma tradição questionável.
Se "Inicio (Uno)" era a origem, um território mais introspectivo, "Al fondo riela" é o outro lado do espelho – mas este espelho está partido. Molina pisa um chão que a reflete e a desdobra, criando imagens que se desfazem e recombinam ao ritmo de cada golpe de tacão. A luz trémula (que “riela”, reluz, como diz o título) não é claridade nem salvação, mas uma presença espectral, uma dúvida que assombra.
Há momentos de violência: a farruca é um corpo fechado, um pulso firme contra a terra. Para quem está familiarizado com os códigos flamencos, até na ironia é magistral, ao pegar num palo de terra e dançá-lo sobre uma projeção de água.
Depois, na soleá, algo se rompe. Há um abandono, um caminho para dentro. Molina vai e volta, oscila entre o domínio e rendição.
No final, não há resolução, apenas um esboço de reencontro – com o outro, consigo mesma, com a sombra que nunca se deixa capturar por inteiro.
Mesmo sem o cante presente, que Francisco Vinuesa toque o exato trecho de "Anda Jaleo", com a mítica frase de García Lorca a ser entoada, em surdina, na plateia ("ya se acabó el alboroto y vamos al tiroteo") e a corte no exato momento, para que ela entre ataviada na sua bata de cola impressionista, é de um engenho assombroso. Segue-se, com trechos de um zorongo em busca do aplauso fácil, a vaidade e o ego em todo o seu esplendor.
Mas, nem sempre Molina é a protagonista neste espetáculo que engloba um concerto fenomenal dos guitarristas Óscar Lago e Francisco Vinuesa, a partir da composição original de Eduardo Trassierra e Yerai Cortés, que não tocaram na noite passada. A bulería das duas guitarras é capaz de fazer qualquer músico presente na sala duvidar da sua condição.
É o seu melhor espetáculo? Provavelmente não. Mas, os três intérpretes ali presentes são tecnicamente irrepreensíveis.
Rocío Molina continua a ser um enigma. Cada espetáculo é um risco, um salto para o desconhecido. Em "Al fondo riela (el otro del uno)", a sua dança é um flamenco rasgado, um ritual onde identidade e alteridade se enfrentam num combate sem vencedor. Ela no seu ato final de desaparecimento, em que se funde num padrão de Manilla com risos de hiena, deixa-nos do outro lado, inquietos, contagiados por essa incerteza.