Rui Reininho regressa com um álbum exploratório e uma obsessão pelo mar.
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Com o álbum "20.000 éguas submarinas", editado na passada sexta-feira, Rui Reininho regressa às raízes experimentais. Um trabalho que surpreende, concebido em parceria com Paulo Borges, rodeado de músicos de gerações mais recentes e também com Alexandre Soares, ex-companheiro nos GNR. A inspiração vem de vibrações tibetanas e da imaginação de Júlio Verne. Uma conversa em roda livre na biblioteca do Ateneu Comercial do Porto, da qual Reininho é sócio, entre outras razões porque não quer ver o histórico edifício transformado em mais um hotel.
Este disco foi sendo gravado entre 2018 e 2020. Foi registando coisas para ver no que dava?
Demorou o tempo que tinha de demorar. Foi feito sem grandes pressões. Convém frisar que este não é um disco a solo, é um trabalho com o [produtor e multi-instrumentista] Paulo Borges. Por questões de marketing, para facilitar, colocou-se o meu nome. Metemos o Reininho & Borges Limitada como um selo. Estou-lhe muito grato.
O imaginário marítimo é uma das presenças dominantes no álbum, a começar pelo título.
Muita gente já me falou, "O Júlio Verne não é um caso menor?". Não há menoridade na escrita. Fez-me tão bem à cabeça, quando era miúdo, ter aquela coleção toda, "Um bilhete de lotaria", "O castelo dos Cárpatos", devorei aquilo tudo. Todo esse imaginário ajudou a preencher a minha obsessão pelo mar. Há um livro surpreendente do Arthur C. Clarke, todo debaixo de água, em que ele conclui algo como "andei a escrever sobre o cosmos, mas o que está lá em baixo é muito mais interessante". Andamos a perder tempo com Marte quando o mar ainda é tão inexplorado. E desrespeitado.
Li que Jacomina Kistemaker, psicóloga holandesa criadora do Centro Punta de Couso na Galiza, onde aborda a espiritualidade e recorre a instrumentos como as taças tibetanas, foi uma das grandes inspirações para este disco. Aliás, ela toca em "20.000 éguas submarinas".
Ela é um bocado a deusa por trás disto tudo. Levou-me para aquelas ondas desde 2002, os gongos, etc. Já sou um nível 4, quase "healing", mas não pratico. O que me interessa mais é a parte sonora da coisa.
O caráter mais exploratório e menos imediato deste trabalho remete, de certa forma, para as suas primeiras aventuras na música.
Sim, o disco viaja um pouco ao passado, às coisas que fazia na Anar Band [projeto dos anos 70 com Reininho e Jorge Lima Barreto]. O JLB era o chefe da nossa matilha de anarcas, do Majestic até ao Piolho. Um tipo extraordinário. Na matilha fazíamos tudo por tentativa e erro. São momentos que deixei um bocadinho em suspenso e que, mais sozinho e em conversa com o Borges, vim a recuperar.
Também parece ter alterado a forma de cantar.
As aulas de voz têm contribuído para isso. As de Pansori interrompi - é uma técnica coreana que me abriu. No Centro [Punta de Couso] comecei em 2002 com técnicas de voz, respiração, porque para as outras aulas, mais "conservadoras", não tenho muita paciência. Para todos os efeitos, estou a cantar melhor, mas ninguém se interessa. Se calhar, o pessoal acha mais graça à altura em que [simula gritaria descoordenada], mas não me importo.
As pessoas com quem vem trabalhando, da editora às equipas de vídeo e aos músicos, são maioritariamente bastante mais jovens.
Comecei a perceber que hoje há uma comunicação mais fácil com as pessoas mais jazzy e experimentais. Praticamente um analfabeto como eu em termos [técnicos], se for pela intuição eles ajudam imenso. Porque mesmo os dodecafónicos eram uns filhos da mãe: "Tens de aprender, tens de seguir o método, isto está mal escrito, esse tipo de experimentação é uma futilidade". Agora não, têm simpatia e disponibilidade.
Pelas minhas contas, é a primeira vez que trabalha em estúdio com o [guitarrista e membro da formação original dos GNR] Alexandre Soares em 35 anos.
Não. O Alexandre toca numa música do [álbum de 2008] "Companhia das Índias", a "Laika virgem". Foi ele que insistiu muito no "Enfado vegetariano", do novo disco. Eu estava a fazer aquilo quase sem estrutura nem linha melódica, só a cappella e com ritmos. Mostrei-a ao Alexandre e ele disse, "Faz esta merda. De certeza que não vais arranjar muitos amigos mas faz. Um gajo tem de estragar, não é?" Começou-se a rir, com o ar malicioso dele. Temos continuado amigos e visitamo-nos. Ele tem um humor porreiro, embora não pareça. Parece mal-encarado, mas é um tipo fantástico.
Um gajo precisa é de árvores e florzinhas
Como são os seus dias em pandemia?
Não me leve a mal, mas não vou puxar a conversa para aí. A única coisa que influenciou o disco pela negativa foi a fábrica [que produz a edição em vinil] em Espanha. Tem um nome engraçado: Krakatoa. Lembro-me de ver um daqueles filmes catástrofe dos anos 60, "Krakatoa, a leste de Java". Houve um problema e o disco físico só vai estar pronto no final de junho.
Já com os GNR, que têm uma estrutura mais vasta, os problemas devem ter sido maiores.
Tivemos de adiar as comemorações dos 40 anos. Ter os meses todos adiados e cancelados é uma desilusão. Estamos naquela coisa da sobrevivência, há que dizê-lo com frontalidade, em concertos para salas limitadas a 50%. É terrível, mas pronto, vai-se tocando. E é mais para manter as pessoas unidas e a funcionar. Para os nossos técnicos é um drama. Um deles disse-me, "Falei com o meu sogro e estou vender micro-ondas". Gajos com uma competência porreira.
Para onde vê o Porto a encaminhar-se no próximo ciclo autárquico? Ou para onde gostaria que a cidade se dirigisse?
Não sei para onde vai. Estou um pouco afastado [Rui Reininho vive em Leça da Palmeira]. A certa altura, vi isto tudo entaipado. Depois, esta onda moreirista.... Acho-o um tipo porreiro, tenho uma certa empatia e amizade [por ele]. Felizmente voto em Matosinhos, mas é muito mais agradável do que o anterior salafrário, um tipo que não tinha empatia por ninguém, um maldisposto, rezingão e inculto. E até tenho um certo pudor com aquela coisa da cultura. Sempre fui mais próximo da contracultura. Depois, a onda dos trolleys e dos Airbnb, também achei um pouco desnecessária. Descaracterizou. O que vem a seguir? Vem outra gente, com certeza melhor. O centro do Porto continua a ter poucos habitantes, o que é uma pena. E não adianta engranitá-lo, como fizeram os Flinstones, o Barney e o Fred. Os barbas. Traço minimal o caraças, um gajo precisa é de árvores e florzinhas.
Conta ver o F. C. Porto ao vivo no Dragão na próxima época?
Sim. Gosto do entusiasmo, da magia, daquela parte do inconsciente. E os gajos bons são os artistas. Mas está pior. As maregadas, não estava a gostar nada do caminho que aquilo estava a tomar. A persona dos jogadores está muito alterada.