José Saramago nasceu há 100 anos. De origens humildes, impôs-se com uma obra de fôlego, coroada com o Nobel. Biógrafo Miguel Real defende que o escritor ainda "faz falta para abanar o nosso comodismo".
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O destino parecia-lhe traçado desde o nascimento: trabalhar no campo, na perdida aldeia ribatejana de Azinhaga, tal como aconteceu com os seus pais e avós. Mas a providência reservou outros voos para José de Sousa Saramago, o primeiro membro da linhagem Meirinho de Sousa a ostentar o apelido que o celebrizaria anos mais tarde, devido ao desleixo de um funcionário do registo civil que acrescentou a alcunha familiar ao nome do rapaz.
Foi apenas o primeiro sinal de que talvez a sua vida não estivesse fadada a ser uma repetição da dos seus antepassados. A mudança da família para Lisboa, aos dois anos, afastou-o da lavoura, mas não dos trabalhos árduos. Concluído o secundário empregou-se numa oficina de reparação de automóveis, como aprendiz de serralheiro.
Se pudesse, perante a falta de perspetivas, teria feito suas as conhecidas palavras de Paul Nizan, adotadas como uma das divisas do Maio de 68: "Tinha 20 anos. E não admitia que ninguém me dissesse ser essa a mais bela idade da minha vida".
Para trás já tinham ficado os anos em que combatia a solidão entretendo-se com "Josephville", o nome que deu à cidade imaginada com que procurava evadir-se mentalmente da Lisboa real que nada lhe dizia.
A meio da adolescência, quando frequentava um curso industrial, surpreendeu quem o rodeava ao dizer que queria ser escritor. Uma aspiração que só alcançaria aos 58 anos, quando pôde dedicar-se à escrita a tempo inteiro, deixando para trás um longo rol de ofícios, entre os quais os de empregado de escritório, editor, tradutor e jornalista.
Autor - com Filomena Oliveira - da biografia "As sete vidas de José Saramago", recentemente publicada pela Companhia das Letras, Miguel Real acredita que "nunca desistir de ser escritor" foi um fator decisivo para a aclamação que só chegaria a partir dos 60 anos.
"As dificuldades iniciais deram-lhe capacidade de resistência face aos imponderáveis nefastos e alimentaram-lhe a solidez da esperança. Nunca desistiu. Ele sabia onde queria chegar e como fazer para lá chegar - escrever, escrever, escrever - só não sabia quando chegaria", aponta o ensaísta.
"perdemos a utopia"
Nas mais de sete centenas de páginas da biografia de Saramago, os autores analisam de forma detalhada o que consideram ser os dois sentidos essenciais da vida do Nobel da Literatura: se a "criação estética" não causa surpresa de maior, já a segunda - "o apurado sentido de justiça social" - ganha uma importância que muitos não imaginariam.
A dimensão cívica e humana de Saramago atravessa, por isso, grande parte dos capítulos, que não se coíbem de analisar até os momentos mais polémicos da sua vida. Como o suposto saneamento de 24 jornalistas do "Diário de Notícias" no Verão Quente de 1975, quando o autor de "Levantado do chão" era diretor.
Na investigação levada a cabo, o biógrafo diz ter descoberto que "Saramago não estava na sala da assembleia plenária" quando os seus colegas foram saneados, tendo falado antes, "duro e forte", para criticar a posição dos jornalistas que escreveram o manifesto. "Saramago não estava inocente, mas também não foi um algoz".
Uma dúzia de anos após a sua partida, há um vazio que permanece, diz Miguel Real: "Com a sua morte, perdemos o sentido da utopia e tornámo-nos utilitaristas. Trocámos a política e os ideais históricos pelos centro comerciais, pelo futebol e pela praia no verão. Saramago faz falta para abalar o nosso comodismo".