Por não obedecer à sua política de "diversidade e inclusão", a Disney decidiu cancelar dois livros de BD do Tio Patinhas : "O pato mais rico do Mundo" (1994) e "O sonho de uma vida"(2002). Nos quadradinhos, os personagens Bombie e Zombie, criações de Don Rosa, são encontrados numa excursão a África e tratados como zombies.
Corpo do artigo
Uma forma de segregação racial, considerou a empresa, alegando assim o motivo para não republicar as histórias. Os fãs da personagem ficaram indignados e pedem que a decisão seja revertida.
"Ao apagar uma obra, como também aconteceu com a BD "Tintin no Congo" também estamos a branquear a história, a dizer que não havia visões racistas e machistas", adverte Pedro Cleto, crítico e divulgador de BD. "Temos de aceitar, mas com algumas reticências, sem esquecer que foi real e que são visões que refletem uma certa época."
Ao censurar uma obra, alertam os especialistas ouvidos pelo JN, isso faz com que a sua procura também aumente. Portanto, é necessário distinguir o que são operações de cosmética e o que é censura.
onda revisionista
Nos últimos meses, a onda revisionista da cultura já levou à reescrita de livros infantis de Roald Dahl, como "Charlie e a fábrica de chocolate" ou "James e o pêssego gigante", onde foram substituídos termos como "gordo", "doido" e "feio".
A onda revisionista cobriu também a saga de James Bond, de Ian Fleming, em que foram eliminadas cenas consideradas racistas e também misóginas, como a visita do herói a um clube de striptease.
"Parte da riqueza cultural de um personagem também pode estar na sua maldade, ou os vilões correm o risco de desaparecer", diz ao JN a socióloga Cristina Carvalho. "É necessário termos cuidado com estes revisionismos do passado. É importante o respeito e a educação pelo outro, mas não pode ser aplicado de forma cega. A segregação racial é algo muito presente nos EUA, que levou até à criação do movimento "stay woke" [literalmente "estar alerta" perante as injustiças sociais], mas não podemos passar de um extremo ao outro e passar de novo à queima de livros", conclui a socióloga.
herança linguística
Pedro Cleto alerta também para outros perigos, como "o empobrecimento da linguagem, com a retirada dos termos ofensivos". Mais comedida é a poetisa, cineasta, dramaturga e letrista Regina Guimarães. "Este tema é muito complicado, não podemos sintetizar. Cada caso é um caso. Se há livros cuja leitura é literalmente ofensiva, devem ser retirados do mercado. Mas, tem de existir contrapeso e medida", aponta.
Outra das facetas para que os especialistas alertam é a visão dos ofendidos. Se, para alguém numa situação privilegiada, pode existir humor, para os lesados este é inadmissível. A indústria intitula este segmento de "leitores sensíveis".
"As pessoas não podem ser etiquetadas pela sua aparência física, nem se pode ter um olhar injurioso sobre as pessoas racializadas", considera Regina Guimarães. E dá como exemplo a língua portuguesa: "Expressões como não faças judiarias, são de um tempo em que ser judeu era ser maldito, um traidor e uma criatura a abater". E acrescenta que, no caso nacional, ninguém se pode destituir de sermos "os descendentes do horror que foram os navios negreiros, sendo isso parte da herança cultural".