Na estreia de "Donbass" em Portugal, realizador ucraniano fala sobre cinema e a guerra no seu país.
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Apesar de ter estreado em Cannes em 2018, a chegada agora às salas nacionais de "Donbass", do realizador ucraniano Sergei Loznitsa, é um acontecimento. O filme, e a conversa que tivemos então com o realizador podem estar datados, e tragicamente ultrapassados pela invasão da Ucrânia pelas tropas russas, mas não deixa de ser premonitório e um documento útil para a compreensão do conflito. Através do retrato ficcional, tragicómico e grotesco, mas baseado em factos verídicos, da situação que se vivia naquele território desde 2014.
Entretanto, há apenas duas semanas, Loznitsa voltou a Cannes com o documentário "The natural history of destruction" onde, através de imagens de arquivo, sublinha a tragédia que a Segunda Guerra Mundial significou para milhões de civis, de ambos os lados do conflito. Tendo de novo a possibilidade de falar com o realizador, a conversa incidiu naturalmente sobre a situação que se vive hoje no país natal de Loznitsa.
Onde estava a 24 de fevereiro?
Estava em Vilnius, na Lituânia. Mas há muito que sabia que a guerra iria acontecer. É claro que fiquei devastado e desesperado pela idiotice desta decisão de invadir a Ucrânia.
O que pensou de imediato nesse momento?
Penso que a ideia de Putin era conquistar a Ucrânia em três dias e proceder a uma rápida mudança de poder. Mas é incrível como foi cego ao não perceber as coisas como elas são. A Ucrânia mudou, já não é a Ucrânia soviética do passado. O povo ucraniano também mudou e nunca se renderia.
Na sua opinião, como e quando é que a guerra vai acabar?
O futuro da Ucrânia depende de como o resto do Mundo vai ajudar. O povo vai lutar até ao fim, como fez em Mariupol ou no aeroporto de Donetsk. Mas falar de infraestruturas, de recursos, da indústria, da possibilidade de 40 milhões de pessoas sobreviverem economicamente, já é outra conversa. A guerra só termina quando houver mudança de regime na Rússia. Mesmo se algum acordo de paz for alcançado, a ameaça de uma agressão vai pairar sobre a Ucrânia enquanto a Rússia tiver este regime.
A ajuda do resto do Mundo e as sanções económicas à Rússia não são suficientes?
Não. Obrigado pelo que fazem, mas não é suficiente. Nos três primeiros dias de guerra, a Europa estava a ver para onde é que iam as coisas. A expectativa era que acabasse muito depressa. E iam dizer que sim, era uma vergonha, estamos preocupados, mas agora há um novo Governo na Ucrânia e temos de lidar com ele e cooperar. A conversa do costume. Neste momento, não há outra coisa a fazer senão resistir na frente de batalha.
Alguns dos seus filmes, como "Funeral de Estado", abordam a questão da propaganda, que Putin utiliza no interior da Rússia.
Mas Putin e eu trabalhamos em direções diferentes. Putin trabalha na tradição soviética, bolchevique. Os bolcheviques sempre foram fantásticos com a propaganda. Há neste momento um fosso civilizacional entre a Rússia e a Europa. A propaganda que funciona tão bem no interior da Rússia parece completamente ridícula na Europa.
Há esperança para o povo russo, com toda essa propaganda que lhe cai em cima?
Infelizmente, não vejo grande esperança para o povo russo. Nunca vi antes e não vejo agora. Nos últimos 100 anos estratos inteiros da população foram destruídos. Os danos causados à nação foram tais que não é possível descortinar qualquer sinal de esperança.
Vai refletir sobre o que se vive agora na Ucrânia, através do seu cinema?
Sim, quero que o meu próximo filme mostre a investigação do Tribunal Penal Internacional sobre os crimes de guerra cometidos na Ucrânia.
A trágica premonição de Loznitsa na estreia de "Donbass" em 2018
A conversa que tivemos com o cineasta ucraniano há quatro anos, quando apresentou "Donbass" em Cannes, é hoje tragicamente premonitória. O realizador explicou-nos a importância estratégica desse território. "É uma das zonas industriais mais importantes da região", diz-nos. "Não só o Donbass, como todas as regiões adjacentes. E hoje a Rússia depende deste território nas indústrias pesadas. Os aviões Antonov são construídos na Ucrânia". E deixou uma mensagem preocupante: "A ideia de restabelecer a União Soviética nunca deixou a mente dos que detêm o poder em Moscovo". Já nessa altura, com confrontos armados no Donbass, o receio de um conflito generalizado existia. "Este conflito só pode terminar quando a sua origem estiver resolvida. E a origem é uma batalha entre duas formas de pensar, a da Europa e a da Rússia".