Rúben Pacheco Correia revela em livro novos dados sobre o episódio de apreensão de droga que inspirou a ficção televisiva.
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Nascido em Rabo de Peixe no final dos anos 90, o conhecido 'chef' Rúben Pacheco Correia habituou-se desde a meninice a ler e ouvir notícias sobre a famigerado caso ocorrido em 6 de junho de 2001, quando um navio encalhado ao largo dos Açores fez espalhar 700 quilos de cocaína pela costa. Estava dado o mote para as mais delirantes histórias, segundo as quais, no auge do delírio coletivo, se fizeram até linhas de campo de futebol com droga.
Este é um livro inesperado no seu percurso – nasce de quê, o que o fez ter vontade de partilhar com os leitores?
Sei que muitas pessoas viram com alguma estranheza o facto de me ter dedicado à escrita de um livro investigação. Isto porque tenho sido, ao longo dos últimos anos, muito associado à gastronomia e em particular à cozinha. Embora só tenha publicado um livro sobre gastronomia – além deste, publiquei três infantis e uma novela romântica. Portanto, se analisarmos bem o meu percurso literário o mais inesperado foi, de facto, o livro de cozinha – embora as minhas raízes e o meu envolvimento empresarial na área o justifique. Quanto a este novo livro: sou natural de Rabo de Peixe. Nunca o escondi e até afirmo-o com muito orgulho. Nasci, cresci e vivo em Rabo de Peixe – embora agora passe algum tempo em Lisboa, tendo em conta o meu regresso à Faculdade. Cresci a ouvir que ser de Rabo de Peixe era ser diferente. E esta diferença não era positiva. Cresci a ler e ouvir notícias que davam conta de um Rabo de Peixe que eu não revia nas ruas por onde passava. Ao crescer, percebi que Rabo de Peixe sofria um estigma que não correspondia à realidade. Pensei que este estigma tivesse terminado. Mas, infelizmente, estava enganado. A série “Rabo de Peixe”, na Netflix, veio ainda alimentar mais histórias que fazem sentido à ficção e que não fazem de todo à realidade. Chamar “Rabo de Peixe” a uma série e dizer que é inspirada em acontecimentos reais, é uma responsabilidade muito grande. É colocar o nome de uma comunidade em jogo e atribuir a esta toda a ficção que se possa criar a partir daí. Quando lemos que é apenas inspirada na realidade e quando estamos a ver a série não nos é dito o que é inspirado na realidade e o que é produto da ficção. Portanto, é legítimo o espectador pensar que toda a história é inspirada em acontecimentos reais e atribui-la a Rabo de Peixe. De certa forma revoltado com isso, decidi iniciar a investigação à volta do único acontecimento que a série se inspirou de verdade – a droga que deu à costa um pouco por toda a Ilha de São Miguel, reforço a ideia “por toda a ilha”. Se Rabo de Peixe serviu de pretexto para contar uma história de traficantes que a si não correspondia, então usei a história da droga do italiano para contar a verdadeira história de Rabo de Peixe. E cheguei onde nunca pensei chegar: aos protagonistas de toda a história real que teve lugar na Ilha de São Miguel em 2001. Descobri histórias incríveis que demonstram que a realidade, afinal, é bem mais dura do que a ficção.
Havia uma certa indignação por ver o nome da sua terra associado a este episódio?
É normal que quando vemos que o nome da nossa terra está a servir de base para uma história que será emitida para uma plataforma com a repercussão internacional que a Netflix tem tenhamos uma certa expetativa de nos vermos ali representados ou, pelo menos, vermos representada parte da identidade da nossa comunidade. Não foi o caso. Como já disse várias vezes, Rabo de Peixe serviu de barriga de aluguer para contar uma história que não era sua. Quem ler o livro perceberá duas coisas: primeiro, que Rabo de Peixe pouco ou nada teve que ver com esta história; segundo, que a verdadeira história, que teve contornes um pouco por toda a ilha de São Miguel, mas que também chegou a Lisboa, a Fall River, à Sicília, ao Brasil, etc, afinal é bastante mais cinematográfica, embora tragicamente real.
A série deveria ser mais enfática a separar ficção e realidade?
Bom, temos que olhar para a série como um produto de ficção. Claramente não tinham interesse em contar a história real, mas, sim, inspirarem-se numa história para escrever um romance. De resto, da série, o único acontecimento real é a história de um italiano que escondeu droga em São Miguel e que esta acabou por dar à costa. Tudo o resto, é pura ficção.
Acha que esta série, graças ao impacto que teve, veio despertar fantasmas antigos?
Veio perpetuar estigmas, falaciosos, através da ficção. Não tenho dúvidas disso. Aliás, usaram o nome de Rabo de Peixe para surfar neste estigma que já existia sobre esta terra no país. Caso contrário, teriam o mesmo critério na atribuição do mesmo nome noutros países. A série só usa como título “Rabo de Peixe” em Portugal. Fora de Portugal, tem nomes diferentes, Turn of the tide, Mar Branco, entre outros. Creio que consegue perceber facilmente a razão de terem escolhido Rabo de Peixe para Portugal. Era fácil de vender.
Como é que os naturais de Rabo de Peixe carregam esse fardo?
O único fardo que carregam é o da injustiça e da discriminação. Rabo de Peixe é uma vila grande numa ilha pequena. Tem tanto de bom como de mau. A forma como é tantas vezes ilustrada é injusta. É preconceituosa. E este é, sem dúvida, o maior fardo que um rabopeixense carrega.
Como se explica que a verdade nunca tenha vindo ao de cima?
Esta história não teria tido o impacto que teve se não fosse a série da Netflix. E, portanto, ao longo do tempo ninguém lhe deu a importância que justificasse um envolvimento na procura e aprofundamento de todos os pormenores à volta deste acontecimento. Ficamos, apenas, pelas lendas e mitos que se contavam pela rua, de um italiano que, um dia, chegou à ilha carregado com toneladas de cocaína, que acabaram por dar à costa. A fértil mente popular encarregou-se de criar as mais rocambolescas histórias que cresci a ouvir.
Qual foi a importância do acaso na forma como conseguiu chegar à fala com os protagonistas deste episódio?
O acaso nasceu de uma dura investigação. Os protagonistas “judiciais”, digamos, o juiz, o inspetor-chefe, etc, foram nomes citados pela imprensa em 2001 e no processo que tive oportunidade de ler. Depois foi mover contactos de forma a chegar até eles. Os cúmplices de Antonino na ilha também. Já a família siciliana de Antonino foi, de facto, um acaso do destino. Tinha a trabalhar comigo, num dos meus restaurantes, um chef italiano natural da mesma cidade da família Quinci. E imaginem: o pai dele tinha sido preso com Antonino Quinci em 1992. A vida prega-nos destas partidas. O Roberto Mezzapelle, o meu chef, foi fundamental para encontrar esta família – presos na Sicília – e através destes consegui chegar até a Antonino Quinci, o protagonista de toda a história, neste momento preso no Brasil. Temos o testemunho exclusivo deste homem, que faz capa do livro, 24 anos depois. É incrível!
Que razões encontra para que a verdade em torno deste caso nunca tenha vindo ao de cima?
Este caso ganha o mediatismo internacional que tem com a série da Netflix. Até então, era uma história que corria de boca em boca na ilha. Uma lenda, quase. Não tinha a visibilidade que agora tem e que merecesse um envolvimento mais sério que não fosse a sua mera reprodução em conversas de cafés.
Tem esperança de que este livro seja um primeiro passo para repor a verdade ou apagar alguns exageros?
Quem ler o livro perceberá logo nas primeiras páginas que este é um trabalho que tenta dignificar o nome de Rabo de Peixe e limpar o seu nome no que toca a este caso. Rabo de Peixe, reforço, não teve nada que ver com a história de Antonino Quinci, do italiano que trouxe a droga em 2001. Antonino só aportou por menos de 24h em Rabo de Peixe, depois de ter escondido a cocaína ao longo da costa norte da Ilha de São Miguel. Com todos os depoimentos e com toda a construção que fiz ao longo do livro, tenho a certeza que, no final, o leitor perceberá que, afinal, Rabo de Peixe foi injustamente associado a este incidente. Repomos a verdade, apagamos exageros, dignificamos uma terra e uma comunidade e, sobretudo, contamos uma história que merece ser contada.
Foi até ao Brasil e à Sicília para saber mais sobre este caso. Sentiu-se quase como um detetive?
Sem dúvida que sim. E adorei, confesso! Foi uma parte fundamental da minha jornada de investigação. Viajei até à Itália, onde conversei com a família Quinci, envolvida na tentativa de esconder a droga na costa de São Miguel. Essa experiência foi uma verdadeira odisseia, uma aventura de busca pela verdade que me levou a atravessar oceanos e fronteiras, sempre com o objetivo de compreender os detalhes, os motivos e as circunstâncias que envolveram aquele episódio. Cada encontro, cada conversa, acrescentou camadas à minha narrativa, permitindo-me retratar com mais fidelidade o que realmente aconteceu. Contudo, a viagem até ao Brasil foi a mais importante. É lá que se encontra detido, atualmente, Antonino Quinci, o protagonista de toda a história que teve lugar em 2001. Temos o seu depoimento em exclusivo e conseguir tê-lo foi a maior recompensa que tive enquanto, digamos, “detetive”.
Como foi estar frente a frente com Antonino Quinci?
Foi uma experiência que me marcou profundamente. Estar na presença de alguém que, de uma forma ou de outra, foi protagonista de dores e perdas tão profundas, trouxe-me uma mistura de emoções difíceis de nomear. Enquanto entrevistador, nestas conversas que mantive, com Antonino e outros, tentei manter uma responsabilidade ética de escutar e de entender, mas também de não perder de vista a minha missão de denunciar e de revelar. Aquele encontro foi, acima de tudo, um exercício de coragem, de empatia e de honestidade perante uma história que precisa ser contada — por mais dura que seja. Cresci a ouvir falar do italiano como uma figura quase lendária. Tê-lo à minha frente foi o concretizar da história materialmente. Foi atribuir rosto e identidade a um homem que tentou sempre, durante toda a sua vida, fugir da sua própria identidade.
Há uma frase batida que diz que podemos sair do sítio onde nascemos mas esse sítio nunca sai de nós – dirá o mesmo de Rabo de Peixe?
E há outra que diz que sair da ilha é a pior forma de ficar nela. Creio que se completam e até responde à sua questão. A essência de Rabo de Peixe permanece intrinsecamente presente em mim, independentemente da distância física. Rabo de Peixe é mais do que uma simples localidade; é uma matriz de memórias, tradições e valores familiares que moldam a minha identidade.
Nós somos o lugar de onde vimos?
Somos, sim, o lugar de onde vimos — embora estejamos em contínua construção. Mas, embora sejamos fortemente influenciados de onde vimos, ao mesmo tempo, temos a liberdade de transcender esse lugar, reinventar a nossa visão do mundo e criar a nossa própria identidade. É o que tenho tentado fazer.
Este livro é um mapa, como escreveu Valter Hugo Mãe?
Creio que sim. Um mapa que guia o leitor pelas coloridas ruas de Rabo de Peixe, com destino à verdade.
Em que alturas essa condição de natural de rabo de peixe mais se faz sentir?
Na resiliência. No constante sentido de superação que mantenho em tudo o que me envolvo. Creio que é uma característica de ser da terra. De superar desafios, de mostrar que sonhar em Rabo de Peixe tem o mesmo valor que sonhar no Porto ou em Lisboa. É uma motivação extra que me guia em tudo.
A gente do mar, que vive do mar e para o mar, tem uma fibra especial?
A vida do mar, como tantas vezes se ouve na ilha, é uma vida difícil. De resiliência. Os povos do mar realmente possuem uma fibra especial — a fibra da coragem, tão flexível quanto as redes de pesca que eles tecem, e tão resistente quanto a esperança que lhes é característica. De boas apanhas, de ir e de voltar.
Este livro foi um parêntesis no seu percurso ou pode abrir algo de diferente?
A vida é um conjunto de parêntesis. Uns mais desenvolvidos do que outros. Não sei se continuarei a escrever à volta de temas de investigação – confesso que, com a exigência do curso de Direito, nos meus tempos livres prefiro ler ficção e algo que me ajude a transcender a minha própria realidade. Mas admito que todo o processo de investigação foi estimulante para mim. Para o corpo e para a mente. No futuro, posso dedicar-me a um novo livro, onde a investigação possa estar de mãos dadas com a ficção. Quem sabe?
É muito jovem e, no entanto, já fez e alcançou muito. Quão perto está de alcançar os seus sonhos?
Eu já alcancei os meus sonhos. Vou é tendo outros e diferentes. A cada concretização, nasce um novo sonho, um novo objetivo, uma nova luta. Sinto-me como um lírio-do-vale. Sinto que renasço quando termino um projeto, tal como o lírio-do-vale consegue renascer mesmo depois de ser colhido. Neste momento, só consigo pensar na próxima história e no próximo livro. Este projeto, na minha mente, já terminou. Foi plantado por mim. E agora só espero que faça parte da vida de quem o aceitar colher.
Sente que teve que lutar mais do que muitos?
Não, tive apenas que acreditar nos meus sonhos. E, sobretudo, ter alguém que acreditasse em mim. Nasci numa família humilde, mas que me deu a maior riqueza do mundo: a liberdade para sonhar. Sem os meus pais, sem a minha família, nada seria possível.