Termina hoje no Porto a maratona de 50 horas de cultura contemporânea graciosa
Corpo do artigo
Ao vivo “Aquilo é um Zé sempre em pé verdadeiro”, grita Maria para as amigas quando se depara com a visão de M. Culbuto. A antropomorfia deste homem-boneco que rodopia, que se aproxima vertiginosamente do chão sem nunca se despenhar, é uma nota de boas-vindas, e simultaneamente uma alegoria, para aqueles que decidem ocupar 50 horas com uma overdose de arte contemporânea.
A diversidade de visitantes e a população transgeracional transformam os oito hectares da Fundação de Serralves, no Porto, num caso de estudo sociológico. E à hora do lobicão (em que não se distingue o lobo do cão), o estudo adensa-se: as crianças começam a retirar-se e entra um novo tipo de população – e também de indumentária. A banca da STCP na entrada da Festa – que até então só pintava borboletas “brilhosas” – é trocada por uma comunidade que pede aquele “glitter” já a implorar festivais de verão.
Na primeira noite do Serralves em Festa, a troca é evidente: da criancinha às cavalitas do pai, para as bonecas insufláveis às cavalitas de um filho de alguém. Por que estão aqui? “Queremos rock, muito rock no Prado”. Aos primeiros acordes de “Galanteio”, com que os Três Tristes Tigres abriram o seu concerto de regresso à Festa, após terem ali tocado na primeira edição, o filho começou por ficar com frio, sem que o plástico da sua companheira o pudesse aquecer. A receita era “beber mais”.
Os acompanhantes acharam mais vantajoso dar-lhe um menu bifana, para que se aguentasse como o “Zé sempre em pé”. Uns metros à frente, ainda no verde Prado, um grupo de mulheres fazia um vídeo em que todas cantavam “the fields are alive”, uma cinematográfica piscadela de olho a Julie Andrews. Mas as roupas de noviça foram trocadas por roupas de roliça, e a escolha musical termina com “ela gosta de sentar” para rematar o vídeo.
Já no Ténis, os sons arabescos do concerto de Nadah El Shazly convenciam a população melómana que para ali deambulou. “Parece que estamos no Cairo”, contava Manuel Santos, ali bem recostado de copo numa mão e cigarro na outra. Também “Edni”, proposta de Né Barros e João Martinho Moura, aqueceu a vontade dos que ali estão para ver dança contemporânea e as exposições dentro do Museu. “Que feia esta parte do Museu, se calhar é antiga”, comentava um homem perante a mostra de Avery Singer. Um assistente sorridente, como o são todos os que trabalham no Serralves em Festa, explicou que “faz parte da exposição”. Não ficou convencido, “é meio esquisita”, atirou o homem. A noite e a madrugada são apenas para os lobos que por aqui passam e desfrutam da adrenalina.
Alvorada descarregada
Já com a alvorada, volta a repetir-se o momento “lobicão”, trocam de turno as populações da noite e madrugada. Saem os da bateria descarregada, entra o gás matinal das famílias com cestos de piquenique, chapéus, protetor solar, munidas de mapas na mão para assistirem ao que mais lhes apraz.
“Músicas para dar a volta ao mundo”, de Ana Madureira e Vahan Kerovpyan, no Pátio do Ulmeiro. Era das mais pretendidas, bem como as oficinas onde se pode aprender “de tudo”, explicava ao JN o pequeno Manuel, enquanto gingava sem parar.
Na manhã de ontem, os Clan Cabane voltaram a fazer do seu número um dos mais pretendidos da Festa, a desafiar a gravidade no Parterre Central. A vista era ímpar, com pessoas em voo por cima da sebe. O estranho fenómeno deixou várias bocas expostas perante a possibilidade de alguém conseguir voar no Serralves em Festa. “Fecha a boca que entra mosca”, dizia a avó à pequena Sofia, intrigada com os seres voadores. Mas, pouco tempo antes houve um desfile de Girafas, de Xirriquiteula Teatre - e logo Serralves se tornou um espaço de sonho.
Abraço pós-apocalíptico
Cristina Planas Leitão, coreógrafa, aceitou o repto de Ana Figueira, diretora da Companhia Instável, e de Cristina Grande, programadora de artes performativas de Serralves, para apresentar “[Hug]”. É uma criação site-specific, para um pós-apocalipse no Jardim da Capela, uma demonstração cabal de que um abraço, bem dado, desequilibrado, em que nenhuma das partes tem intenção de largar - e que pode fazer parar o tempo.
Também no âmbito da dança, um dos grandes momentos do Serralves em Festa era a presença de Boris Charmatz, ainda diretor do mítico Tanztheater Wupertal de Pina Bausch. “20 dancers for the XX century”, um arquivo vivo das grandes figuras da dança, foi a proposta, com João Fiadeiro entre os intérpretes.
Mas, a fisicalidade de Frank Willens no limiar do punk, a interpelar os visitantes na Ala Siza Vieira enquanto cita Nietzsche, arrebatou até os corações duros. “Sensacional”, dizia Maria Amélia, agarrada à muleta e incapaz de se mover, não por falta de locomoção, mas porque estava hipnotizada.
“Ai se o Siza visse como eles lhe ocuparam a casa”, ri desalmadamente José Silva. A noite de ontem trouxe ainda o grande foco do cartaz de Pedro Rocha, os Spiritualized, uma promessa de congregação em torno do space rock.