Festival gratuito regressa desta sexta-feira a domingo com 50 horas ininterruptas de espetáculos, num laboratório de sensações para todos os públicos e idades.
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Como os solstícios ou os inevitáveis boletins meteorológicos de fim de primavera, o Serralves em Festa regressa – e regressa com a naturalidade das coisas inevitáveis: “Como os impostos”, dir-se-ia com certeira ironia. De hoje a domingo, o mais imenso dos milagres culturais volta a acontecer no Porto: 50 horas consecutivas de cultura contemporânea, toda ela gratuita, espraiada pela vastidão verde dos jardins de Serralves.
É a 19.ª edição de uma celebração que se escreve com corpos, luzes, sons e ideias – muitas ideias. Como recorda Philippe Vergne, diretor do Museu, este é um “espaço seguro para ideias inseguras”. Que é como dizer: aqui há margem para o risco, para a dúvida, para o desconforto criativo. No ano passado, foram 275 mil os que disseram “presente”. Este ano, volta-se a esperar a mesma multidão, chamada pela promessa de experiências raras.
Ao longo de três dias e duas noites, mais de 500 artistas ocuparão mais de dez palcos naturais e construídos: do Museu à Casa do Cinema Manoel de Oliveira, passando pela novíssima Ala Álvaro Siza. A programação? Eclética, desafiante e aberta ao Mundo. O foco maior recai sobre as artes performativas, com nomes consagrados e coletivos emergentes a mapear o presente da dança e da performance.
20 figuras do século XX
O coreógrafo francês Boris Charmatz traz um dos momentos mais aguardados: “20 Dancers for the XX Century”, uma espécie de museu vivo da dança, onde intérpretes corporizam a história, repetem-na e reinventam-na.
São solos icónicos revisitados, corpos que se fazem arquivo, memória, resistência. Mas, porque nenhuma festa resiste sem música, os Spiritualized vêm de Inglaterra com o seu rock espacial e alma gospel. Jason Pierce, comandante deste voo sónico, promete um concerto para ser sentido mais do que ouvido. Os Três Tristes Tigres, que marcaram presença logo na edição inaugural, regressam como quem visita a casa antiga e traz novos discos no bolso.
Do vibrante Porto Rico chegam os Poncili Creación, dupla de criadores irreverentes que transforma a rua numa cena viva. Marionetas gigantes, ruído, humor corrosivo e uma estética que dança na corda bamba entre o grotesco e o sublime. Uma performance sem filtro, onde o público deixa de ser espectador para se tornar cúmplice.
Do lado das artes visuais cruzadas com performance, o coletivo Quarto apresenta “Moving landscapes”: um cubo metálico inserido na natureza, como corpo estranho a provocar reflexão sobre o nosso afastamento físico e simbólico da paisagem. Uma instalação que pergunta mais do que responde, como deve ser.
“EDNI”, da dupla João Martinho Moura e Né Barros, é um poema em linguagem digital. A performance mistura sensores, projeções e movimento numa dança entre carne e pixel. A questão é latente e inquieta: será a tecnologia capaz de tocar o que há de mais íntimo no humano?
Cristina Planas Leitão & Cia propõem “[hug]”, uma peça coreográfica para 20 corpos que partem do colapso para ensaiar a possibilidade de um novo abraço, como se dançar fosse uma forma de reconstrução coletiva.
Duelos filosóficos
Para os mais novos (ou para os adultos dispostos ao reencanto), até porque domingo há o Dia Mundial da Criança, o programa familiar aposta forte no chamado “Edutenimento” – educação com entretenimento, ou vice-versa. Há girafas sonhadoras no espetáculo “Girafe”, dos Xirriquiteula Teatre, e padeiros acrobatas em duelo filosófico em “Dolce salato”, dos Carpa Diem. Serralves em Festa é isto: um parque transformado em laboratório de sensações, e parque de diversões, onde cada canto pode ser palco e cada instante, arte. Durante 50 horas, o tempo suspende-se – e a cidade aprende a ver de novo.