Serralves em Festa acordou devagar, mas com os olhos bem abertos. A 21.ª edição do Serralves em Festa começou como quem respira fundo antes de um mergulho: com calma, mas cheio de corpo. De tarde, vestiu-se de fresco, envolta numa névoa tímida que arrefeceu o dia. Ainda assim, a entrada não tardou a ficar concorrida.
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Entre famílias, estudantes com máquinas fotográficas penduradas ao pescoço, casais de passo sincronizado e crianças a correr em ziguezague, a multidão começou a compor um quadro vivo que já é, por si só, espetáculo.
À porta, os primeiros ruídos da festa não vinham dos artistas, mas dos portões. Bicicletas e cães, por agora, ficam de fora. Alguns visitantes não escondem a frustração – o desconforto de uma regra que, embora clara, contraria a ideia de parque aberto e partilhado. Um pequeno momento de tensão que depressa foi absorvido pelo ritmo fluido do evento.
No Parterre Central, o primeiro grande encontro da tarde: os franceses Clan Cabane apresentaram um espetáculo que não se limita ao gesto. É física pura, mas também poesia suspensa. Um trio de corpos que se procuram, se constroem e desmontam, como se fossem partes móveis de uma estrutura emocional maior. O público — muito, atento, quase em silêncio — formava um semicírculo denso. Um murmúrio de encantamento atravessava o ar entre cada suspensão, cada queda, cada reencontro. Foi um começo simbólico: um convite a que nos deixemos tocar, cair, ser apanhados.
Mais adiante, nos caminhos que serpenteiam entre as árvores, Maria Silva procurava um mapa. Viera com a filha, Aurora, que ia apontando com o dedo os sítios onde queria voltar — tinha visto M. Cubulto no warm-up do dia anterior e não lhe saía da cabeça. “Parecia que estava a sonhar de olhos abertos”, dizia, enquanto puxava a mãe pela mão. Maria, por sua vez, queria garantir lugar para Três Tristes Tigres. “Nunca os vi ao vivo. É quase um mito pessoal. Já passou da hora.” A relação com a música tem esse lado de dívida antiga, e Serralves, neste fim de semana, funciona também como acerto de contas com o que fomos adiando.
Serralves em Festa é, como sempre, mais do que a soma dos espetáculos. É uma cidade dentro da cidade, onde a arquitetura do Museu se mistura com a das emoções. Os corpos em movimento, os cheiros a relva molhada e a comida do mundo, os risos cruzados de quem não se conhece mas partilha um lugar — tudo isto compõe uma narrativa viva, sem guião fixo. E a névoa? A névoa fica, como metáfora gentil de um início que se quer demorado, sensorial, sem pressa de ser explicado. Porque em Serralves, a festa não é apenas programa: é experiência.