“Outra tempestade” é a visão crítica de Carlos J. Pessoa sobre a peça sobrenatural do bardo inglês. Está em cena até domingo no Teatro Carlos Alberto.
Corpo do artigo
“Nada disto é natural”, diz uma das personagens de “Outra tempestade”, o segundo tomo do ciclo “Outro Shakespeare”, que será apresentado no Teatro Carlos Alberto, no Porto, até março. A frase descodifica tanto o material primário – “A tempestade”, um dos últimos textos do bardo inglês, e um dos que mais uso faz do sobrenatural – como o dispositivo do espetáculo: uma montagem brechtiana que nos recorda, a cada passo, que nos encontramos no teatro e, por isso, não devemos “levar a sério a hipótese de redenção”. Uma “ferramenta para o sobressalto” – eis o propósito da “tempestade” nas palavras do encenador, Carlos J. Pessoa.
Gerada pelo Teatro da Garagem em coprodução com o Teatro São João e o Festival Mindelact, em Cabo Verde, onde “Outra tempestade” fez a estreia em novembro passado, a proposta soma ao hipotexto a versão crítica de Aimé Césaire, escritor da Martinica que está na base do movimento da “negritude” – esse exaltar da cultura negra que se desenvolveu a partir dos anos 1930. Césaire foca-se na relação entre Próspero, duque de Milão usurpado por António, seu irmão, que se encontra exilado numa ilha remota há 12 anos com a filha Miranda, e Caliban, o indígena selvagem que Próspero controla por feitiçaria.
Césaire quis inverter os papéis, olhando a partir do século XX para o que considerou ser a visão eurocêntrica de Shakespeare no início do século XVII – ou seja, Próspero é o colonizador, Caliban é o explorado. Trata-se de imaginar outra relação, mais convivial, em que o “Outro” pudesse desposar Miranda.
A essas duas camadas o encenador acrescentou excertos metateatrais que convocam discussões sobre o ofício de ator e que vão sabotando o espetáculo (a ficção) – em nome do tal distanciamento brechtiano que visa manter o espectador alerta (para a realidade). O que se vê é essencialmente um ensaio, com exercícios de aquecimento físico e vocal num palco despido; jogos coreográficos e momentos musicais. A opção é deliberada, resta perguntar se resulta… Dizemos só que o ativismo não basta para erguer um espetáculo – sem qualidade artística a sua mensagem será sempre pífia.