Seis anos depois da estreia de Íris, o coreógrafo Marco da Silva Ferreira e o realizador de cinema Jorge Jácome voltam a juntar-se para uma espécie de segundo capítulo denominado Siri. A peça que tem nome de aplicação para telemóvel estreia esta sexta-feira no auditório do Campo Alegre, no Porto.
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Siri projeta um campo arqueológico, meio futurista, meio antropológico, onde a dança e o cinema se cruzam numa espécie de balão de ensaio para a mimetização e imitação da memória.
Marco da Silva Ferreira nasceu em 1986 em Santa Maria da Feira, é intérprete profissional desde 2008 e estreou a primeira peça como coreógrafo em
2014. Jorge Jácome é de Viana do Castelo, nasceu em 1988 e realizou a primeira curta- metragem em 2013.
O que é que motivou a criação desta peça?
Marco da Silva Ferreira (MSF) - Este projeto começou em 2015. Houve uma primeira pesquisa, feita por mim e pelo Jorge num primeiro encontro, que se chamava Íris. Tinha exatamente a ver com o potencial de a dança se encontrar com o cinema. Na altura decidimos que fazia sentido o espetáculo chamar-se Íris por ser uma semântica comum a ambas as áreas. Ao chegarmos ao final desse processo, conseguimos desenvolver uma data de exercícios quase técnicos onde efeitos óticos e movimentos estavam associados. Mas percebemos logo que era uma coisa que não tinha ficado acabada. Tínhamos muito interesse em desenvolver esta colaboração de forma mais profunda para lá das potencialidades das disciplinas dança e cinema, trazendo um pouco mais a subjetividade de cada criador para um processo seguinte, um novo layer do trabalho.
Que continuidade é essa, concretamente?
MSF - Claramente houve aqui logo a rapidez de espelhar a palavra Íris e torná-la em Siri. Portanto, mais do que a palavra vir de uma ilustração da aplicação, vem de um lugar heterotrópico da palavra Íris. Siri traz uma equipa maior, trabalhamos com um desenhador de luz, pessoas relacionadas com a sonoplastia e mais três intérpretes, o que faz com que o projeto ganhe uma nova espessura e novas camadas. Do ponto de vista do conteúdo, era muito importante que os dois universos, o do cinema e o das artes performativas, estivessem mais presentes no trabalho e não fosse um trabalho tão académico como Íris. É simultaneamente um trabalho de cinema e de artes performativas.
O que propõem, então?
Jorge Jácome (JJ) - Uma espécie de futuro distópico em que o humano, o tecnológico e o digital se começam a confundir. A peça sobrevive neste campo, que é simultaneamente arqueológico e tecnológico. Depois fazemos uma relação com a ideia de arquivo, de memória, com a dispersão dos corpos e das imagens desses corpos e dos movimentos e objetos que entre eles existem.
Tudo isto acontece onde?
MSF - Num palco com uma carpete roxa, com 12 robôs de luz que estão no chão em vez de estarem na tela, e que não servem para iluminar os corpos, mas servem sim para ser objetos coreográficos, com movimento, com desenho, com dinâmica. São quase objetos vivos, animados, que conseguiram ao longo deste tempo recolher informação e mimetizar determinados comportamentos humanos. Além desses robôs existem quatro corpos humanos em cena, que servem como contraponto a este aparato tecnológico, e que trazem à cena um lugar altamente orgânico, porque são matéria aparentemente de carne e osso, mas ao mesmo tempo o movimento e a tarefa que trazem é de tal maneira artificial que é como um ciborgue hipersensível. É tão real que não consigo acreditar que não o é, mas ao mesmo tempo não tem o lugar pedestre e mundano de um corpo em interação diária. Não tem a naturalidade que aparenta ser uma pessoa em cena a viver aquilo que está a sentir. Aqueles corpos são matéria orgânica que pretende ser também um acumulador arqueológico de memória.
O que podem dizer da coreografia?
JJ - A coreografia é um bocadinho pensada sobre esse processo, por um lado de interação com este aparato tecnológico - porque existem duas telas de projeção de imagem onde estes intérpretes existem e estão a ser projetados. Ou seja, existe um vídeo com imagens daqueles intérpretes em movimento, que é construído quase como se fosse um detrito de um filme em que o loop e a repetição de uma determinada imagem acontecem durante muito tempo. É induzida a essa imagem, aparentemente estática, uma capacidade de movimento. Por outro lado, a peça tem uma linha narrativa dos corpos, que é importante, porque quase que justifica um pouco toda a coreografia que foi montada.
Que é?
MSF - Estes quatro humanos estão neste contexto e entram num processo de massagem feita através de uma automassagem, quase como se tentassem entrar num processo de reparação, de cura, de limpeza. Quase como se fizéssemos uma metáfora sobre o que é que acontece às memórias quando interagem entre si e de que forma é que elas se adaptam. Estes corpos são carregados de movimentos que trazem prazer, curiosidade, dor, fadiga, êxtase. E é assim uma espécie de o corpo a entrar em ação à procura das respostas num aparato altamente tecnológico. Existe um sítio, por um lado, relacionado com a memória e com o passado, por outro lado relacionado com a sensibilidade e com a intimidade, porque a mensagem é uma coisa muito íntima. Então, o universo desenhado é uma espécie de ficção tecnológica melancólica.
Em que medida é que duas formações tão diferentes se completam acrescentam alguma coisa à outra?
JJ - Em Íris havia uma consciência mais clara do lugar de cada uma das disciplinas, o meu do cinema e o Marco na dança. Agora, em Siri, gosto de pensar esta peça como sendo de dança cinematográfica, em que removemos uma ideia mais consciente da área em que trabalhamos e vamos, de forma subtil, difundindo estas áreas. Não é possível pensar nesta peça e não pensar também sobre o lugar do corpo em palco, que é uma coisa em que normalmente não trabalho - o meu percurso vem do cinema - e por isso é que a representação do corpo é sempre a partir de uma memória e de uma gravação.
Nota-se o entusiasmo!
JJ - O que me entusiasmou neste projeto, e que de alguma forma é posto em causa devido à situação em que vivemos, é o lugar do corpo humano em cena. A peça problematiza isso, quer seja através do que é um corpo projetado, do que é um corpo que dança mas não é um humano, do que é um corpo humano cujo movimento não é necessariamente aquele que tomamos como princípio de ser real ou ter características humanas, e problematizar a diferença entre o humano, o tecnológico e o digital.
Iam estrear Siri no ano passado, entretanto a pandemia adiou o espetáculo e ele evoluiu. O que vai ser apresentado este ano é exatamente igual?
MSF - Temos vindo a trabalhar neste processo de forma longa. Eu e o Jorge também somos amigos e, portanto, convivemos muito para lá do trabalho e há um universo de
interesses comuns. Isto também faz com que a cocriação seja muito mais intuitiva, é quase como saber o que o Jorge pode pensar mesmo antes de ele o dizer. E de esta peça acompanhar o nosso crescimento, porque é mais um ano, mais um repensar.
Ou seja, é diferente?
MSF - O grande processo criativo e as residências que íamos fazer para esta peça no ano passado acabaram por não acontecer, foram canceladas. Ou seja, quando íamos entrar em residência foi quando paramos. Por isso não temos noção se a peça do ano passado seria como esta, porque não entramos na fase intensiva de trabalho. Eventualmente será diferente, na medida em que no ano passado tínhamos um dueto e tivemos agora oportunidade de ampliar a equipa. Era um dueto, um dos intérpretes já não podia fazer a peça, tivemos de fazer uma audição, em vez de escolhermos mais um intérprete decidimos escolher dois, já era um trio. De repente, entrámos em processo e decido com o Jorge que faria sentido também entrar, portanto passou a quarteto. Sim, teria sido outra peça.
Em que medida é que a formação passada, no caso do Marco com a dança urbana e no caso do Jorge com o cinema, está presente no trabalho que fazem hoje na dança contemporânea?
MSF - Tenho alguma dificuldade em conseguir distinguir as danças urbanas ou essas expressões de dança urbana como não sendo dança contemporânea. Existe a convenção de que a dança contemporânea é um conjunto de determinadas coisas, quando para mim o meu lugar também é o de ampliar o significado de dança contemporânea atual. Inevitavelmente, o meu contexto inicial de dança vem desta relação muito forte com os anos 2000, a MTV, aquele bombardear de uma cultura afro-americana que chega até mim. Com a idade, e com o sentido crítico, fui compreendendo algumas coisas menos instantâneas e ganhei um olhar mais crítico sobre essas coisas que consumia. Não consigo dizer que aquilo que faço não tem forte influência de danças, dinâmicas e de formas de organização motora e de corpo relacionadas com as danças urbanas. Está tudo lá.
JJ - Não sinto que o processo de realização desta peça de palco seja muito diferente do meu processo de fazer num filme. Enquanto realizador, tenho uma perspetiva um bocadinho passiva com aquilo que está a acontecer à minha frente, e trabalhar nesta peça é um pouco o mesmo processo. É ir buscar o melhor dos intérpretes, pensar em ritmo, em tensões, em conceitos, e organizá-los numa estrutura que tenha interesse para mim e seja um reflexo daquilo que estou no momento a viver. Os problemas são diferentes, mas o coração é o mesmo.
Que outras influências foram absorvidas ao longo dos anos?
MSF - Claro que tem influência o facto de, depois disso, ter estudado fisioterapia e de ter uma consciência de corpo e de fisionomia muito grande, o facto de ter participado em múltiplos processos de criação com coreógrafos portugueses e não só que acabaram por ser a minha escola porque não fiz uma academia em dança. O meu trabalho foi a minha formação. Hoje sou o resultado de tudo isso, mas há alguma coisa muito basal sobre o porque é que comecei a dançar, quais são os estímulos que me atraem na dança, com esse passado. É se calhar um percurso insólito, menos improvável.