Há 70 anos, Pablo Neruda acudiu a dois mil espanhóis que fugiam da ditadura de Franco, fretando um navio que os transportou até ao Chile. Foi a partir deste facto histórico que Isabel Allende escreveu o seu novo romance, "Longa pétala de mar", verso extraído de um poema de Neruda.
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Ao "Jornal de Notícias", a autora de "A casa dos espíritos" não se furtou a estabelecer um paralelismo entre esses tempos e os atuais ou a comentar a agitação social por que passa o seu país.
Os heróis do seu livro fogem da guerra, mas, mesmo noutro país, a tragédia bate-lhes à porta. Não podemos fugir ao destino?
É frequente não termos controlo sobre os acontecimentos importantes que determinam a nossa vida, como a saúde, família, guerra ou catástrofes, etc. Nesse sentido, sim, podemos dizer que há destino.
Neruda é uma das personagens. Como fez para que a admiração não atrapalhasse a construção da personagem?
Tenho uma grande admiração pelo trabalho de Neruda, mas sou bastante crítica em relação à sua vida pessoal. É preciso separar o criador do seu trabalho. Não precisei de inventar muito sobre Neruda. Quase tudo o que digo está bem documentado em "Confesso que vivi", as suas memórias.
Neruda referia-se à ação de fretar o barco que salvaria os refugiados como o seu "mais belo poema". E o seu, qual foi?
O meu poema mais bonito são os meus dois filhos, Paula e Nicolás.
Não faltam intelectuais que assumam um papel decisivo fora dos livros?
Não podemos generalizar. Há muitos intelectuais que se preocupam com a situação do Mundo e abraçam causas diferentes. Como escritora, quero contar uma história que me diz muito, mas não é minha intenção fazer política ou pregar ideologia. A minha forma de ação social é através da fundação que criei.
Olhando para a forma magnânima como os refugiados foram então acolhidos, acredita que hoje somos menos solidários?
É certo que os refugiados que chegaram ao Chile foram excecionalmente bem recebidos. Mas milhares dos seus compatriotas morreram nos gulags da União Soviética, nos campos de extermínio nazis ou na Legião Estrangeira Francesa. Após a Segunda Guerra Mundial, havia 50 milhões de pessoas deslocadas na Europa e só um número muito limitado foi bem recebido. A atual crise de refugiados não desaparecerá. Pelo contrário, haverá cada vez mais pessoas deslocadas pela violência ou pelos efeitos das mudanças climáticas. Teremos de encontrar soluções globais para essa tragédia.
Trump, Bolsonaro, Erdogan... O Mundo está um lugar mais perigoso?
Sempre foi perigoso, mas agora estamos mais ligados e informados. Por isso, parece-nos que nunca fomos piores. Vivi o suficiente para saber que somos melhores do que antes. A Humanidade evolui, não recua. Não o fazemos em linha reta: tropeçamos, recuamos e pulamos.
A erosão dos partidos tradicionais facilitou a ascensão dos populismos?
As instituições políticas que temos hoje foram criadas há mais de um século. O Mundo mudou e a democracia não se adaptou à mudança. Somente os ricos se sentem representados, porque controlam o poder. Os outros estão a procurar novas formas de contrato social. Por isso, líderes populistas, como Trump, parecem desafiar o "establishment", atraindo assim as massas, mas, na realidade, nada mudam. Aproveitam o poder para seu próprio benefício.
O seu país, o Chile, atravessa uma fase muito complicada. Como se chegou à atual situação?
O Chile era considerado o paraíso da América Latina, o único país que progrediu com estabilidade. Por isso, o surto repentino de descontentamento popular apanhou o Mundo de surpresa. O que aconteceu? Desigualdade e pobreza disfarçada. As estatísticas não mostram a distribuição de recursos e oportunidades. 1% da população possui 25% da riqueza e vive numa bolha de extremo luxo, enquanto 40% dos chilenos, que recebem o salário mínimo, não podem pagar serviços básicos.
Parte quase sempre de personagens e acontecimentos verídicos. A realidade oferece-lhe tudo o que necessita para criar?
A experiência jornalística que tive ajuda-me muito. Não preciso de inventar muito. Ouço, observo, leio, aprendo e, por isso, escrevo os meus romances. Tudo o que escrevo é solidamente plantado na realidade.
Fala-se sempre na força das suas personagens femininas e em "A longa pétala de mar" há muitos exemplos disso mesmo. O que a atrai tanto nestas figuras?
Tenho uma fundação cuja missão é dar força e poder às mulheres. Graças à fundação, conheço mulheres fascinantes, verdadeiros exemplos de heroísmo. Elas inspiram-me. Também vivi cercada por mulheres extraordinárias e sempre trabalhei com elas e para elas. Conheço-as muito bem. As personagens dos meus livros, sejam homens ou mulheres, são sempre fortes. Essas são as pessoas que me interessam.
Porque não vem a Portugal mais vezes?
Peço que me desculpem por não ir há algum tempo a esse país tão bonito. Tenho 77 anos e a energia para viajar já não é idêntica. Preciso de tempo, solidão e silêncio para escrever. A tentação de ir a Portugal é grande, porque é um dos destinos mais atraentes do Mundo e tenho muitos leitores por aí.
Tem raízes portuguesas. Não tem curiosidade em saber mais sobre esses familiares remotos?
A minha avó era castelhana-portuguesa. A família do seu pai era Barros e a da sua mãe Moreira. Um dia vou estudar essa genealogia.
Continua a manter um ritmo de publicação invejável. É o segredo da sua boa forma e longevidade?
Tenho uma saúde muito boa, mas ainda não consigo falar sobre longevidade. A minha mãe morreu com 98 anos e o meu padrasto com 102. Isso, sim, é longevidade. Tenho muita energia para escrever, porque adoro o processo. Para mim, não é trabalho, mas diversão.