Partindo do livro “A Varanda do Frangipani”, o veterano realizador moçambicano Sol de Carvalho realizou o filme “O Ancoradouro do Tempo”, já nos cinemas.
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A história centra-se em torno de um inspetor da polícia chamado a investigar um crime ocorrido numa velha fortaleza do tempo colonial, agora transformada em lar. Quando todos os seus ocupantes reclamam a autoria do crime, percebe que o local esconde segredos mais complexos do que poderia imaginar. Estivemos à conversa com Sol de Carvalho.
Como é que descobriu este texto do Mia Couto?
Eu já tinha adaptado o “Mabata Bata”, um conto de um dos primeiros livros que ele publicou. Ele disse-me que tinha gostado do filme, mas que não faria as mesmas coisas que eu. Era normal, já nos conhecíamos há 40 anos, e decidimos fazer outro filme em conjunto. Disse-me que tinha uma história boa para mim, que eu iria gostar. Eu já tinha o livro, li-o outra vez e decidimos avançar.
Como é que trabalharam em conjunto?
Pedi-lhe para me mandar uma versão digital do livro. Como não o podia adaptar por inteiro, peguei no livro digital e cortei, realinhei e juntei uma ou outra coisa aqui e ali. Normalmente o Mia é o autor de uma ideia. Lança-a e depois deixa os argumentistas trabalharem. Mas neste caso ele quis realmente participar no guião. Queria experimentar o que era fazer um guião de cinema. Íamos ver se a nossa amizade resistia. Fomos à luta, começámos a trabalhar e resistimos. A nossa amizade até se fortaleceu.
Há sempre esse debate sobre o que é uma boa adaptação de um livro…
É o confronto escritor/realizador, em que o realizador tem de procurar balancear as imagens com palavras, com sons, com cenários, com atores. Um livro tem outro tipo de enfrentamentos, é sempre um desafio muito grande, porque há sempre qualquer coisa que se quer guardar do que é nosso. Ele queria guardar as palavras como eu queria guardar as imagens. Mas creio que só duas pessoas que têm o mesmo ponto de vista sobre o mundo, é que podem resistir a um confronto destes.
E que nasceram na mesma cidade…
É verdade, somos os dois da Beira. Embora ele tenha ficado mais tempo, eu só sou da Beira de nascença, quase. Mas eu tinha também trabalhado com ele quando foi diretor da revista Tempo, em 1980. Disse-lhe logo que queria ir trabalhar para o cinema, fiquei lá só por ano.
As questões pós-coloniais estão em cima da mesa e o filme aflora esse tema. Como é que o assunto é visto em Moçambique?
Não sei. Sei como é que eu penso. Penso que História é História. Temos de enfrentar isso. Do ponto de vista artístico sim, é preciso discutir em relação aos artefactos, mas é preciso ser-se muito sereno. É preciso saber se temos em Moçambique capacidade técnica e financeira para guardar todos os artefactos que saíram de lá. E para investigar os que ainda lá temos. Um país com as nossas dificuldades não tem o mesmo olhar que um país europeu que recebe um milhão de pessoas por ano num museu.
Aquela fortaleza, que por estar em ruínas proporciona uma utilização dramática extraordinária, tem algum plano para ser recuperada?
Sim, por parte da própria UNESCO. A capela que vemos no filme tinha sido destruída por um ciclone, mas já houve um processo de recuperação. E houve partes da fortaleza que não filmámos, porque já estavam mais bonitas. Aquele forte aguentou ali durante séculos. Mesmo não estando a ser tratado, ele está lá, resiste. Como a memória dos velhos.
A questão dos albinos é conhecida pela sociedade moçambicana?
Fiquei surpreendido porque pensei que era mais conhecida na Europa. Os albinos não são o problema principal do filme, sejamos claros. É um leitmotiv. Eles são obviamente pessoas estigmatizadas. E há uma crença fortíssima de que os órgãos deles são especiais para recuperarem pessoas. Há mitos desses em África, esquisitíssimos. Como de que a cura do HIV se faria pela desvaginação de uma criança. Um crime hediondo.
Qual é a situação neste momento?
Há um tráfego de albinos, para transplante de órgãos e para feitiçaria. Assim como há um tráfego de escamas de pangolim para efeitos medicinais. Ouvi falar em cinquenta mil ou cem mil dólares por um rim de um albino. Há estudos sobre os problemas do albinismo, sobretudo em África. Criaram-se todas essas mitologias à volta deles e passou a existir um tráfego. E o filme podia dar indícios de que se estava a passar qualquer coisa. Era importante chamar a atenção.
Como é que decorreu o processo de casting?
Nos últimos anos Moçambique passou a ter uma Escola Superior de Artes, onde se ensina teatro, representação, música. Além da Escola Superior de Cinema, que também existe. Muitos dos que fizeram o filme são dessa escola. À exceção da atriz principal, já tinha ideia de quem poderia interpretar cada personagem. Contactei-os diretamente, não houve um casting para tomar decisões desse tipo. E eles também já me conheciam.
Como é que trabalhou com os atores?
Trabalhámos dois meses em palco, em Maputo, para tentar identificar como é que seria a representação deles. Eram atores de teatro, tínhamos de passar a uma representação de cinema. Mas a partir de certa altura comecei a suspeitar que não era uma boa ideia. Já muito perto da filmagem chegámos a uma conclusão. Se as pessoas no filme estão a contar uma mentira, estão a representar. Não tínhamos de eliminar completamente essa ideia da representação. Estou muito contente com o trabalho dos atores.
E podemos dizer que os seus códigos de representação são especificamente africanos?
Esse é o problema de fundo. Qual é a representação que é a correta? É a americana, a europeia, a do Stalisnavski? Ou é a africana? Sabemos que a tradição africana é muito mais gestual, muito mais física, impulsionada pelos rituais que são feitos nas aldeias. Então não achei justo da minha parte retirar completamente alguma identidade desse tipo de representação. O filme foi construído à volta destas ideias.
E o cinema moçambicano, como está?
Há um problema de falta de recursos. Costumo dizer que se alguém desse 100 milhões a Moçambique, o que deveria fazer? Dar à educação. Dar à saúde. Não ia dizer para dar ao cinema. Mas estou a falar contra mim próprio. Há muitas outras coisas que são prioritárias e nós temos de compreender isso. Mas não justifica que a situação seja tão diferenciada como é. Não acho que seja justo, mas é um país com muitas dificuldades.
Mas a identidade de um país também se mede pelo cinema, pela cultura em geral.
O cinema criou uma ideologia na América. O problema que temos é o governo deixar cair as coisas no esquecimento, ou pô-las debaixo do tapete. Estamos no mundo das ilusões, dos concursos. O cinema moçambicano já foi a segunda força de comunicação do país. Tinha recursos, mas hoje infelizmente tem muito poucos. Os que acabam por chegar à produção são muito pequenos. O cinema perdeu, ganharam as telenovelas. Mas o cinema não se deve divorciar da televisão. Devem é cada vez mais casar-se.
Como é que foram as primeiras reações ao filme?
Fico sempre muito curioso para saber como é que as pessoas recebem os meus filmes. Há três momentos muito interessantes, o momento da ideia e da passagem ao guião, o momento do “som, câmara, ação” e o momento do encontro do filme com as pessoas. Ainda que sejam apenas seis ou sete pessoas, eu quero saber o que elas pensam do filme. Não faço ideia de como o filme vai ser recebido aqui. Para mim, olhar das pessoas é sempre muito importante.
O que diria às pessoas para irem ver o filme?
Eu não me considero um cineasta europeu Mas convido uma plateia europeia a olhar para um filme que, apesar da minha cor de pele, considero um filme africano. Interessa-me muito saber como é que essa relação funciona.