
"A literatura é cada vez mais um bem necessário", defende a autora de "O lugar das coisas perdidas"
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No seu terceiro romance, "Três mulheres no beiral", Susana Piedade escreve sobre os laços familiares que resistem a tudo, até aos efeitos da especulação imobiliária no Porto. Na opinião da finalista do Prémio Leya, o poder político e a sociedade civil "despertaram tarde para este drama".
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O Porto, cidade onde Susana Piedade nasceu e ainda vive, é um dos protagonistas de "Três mulheres no beiral", o seu novo romance, recentemente editado pela Oficina do Livro.
Ambientado no Porto dos nossos dias, a braços com uma pressão turística evidente e uma especulação imobiliária galopante, o livro acompanha três gerações de mulheres, unidas por laços de afeto indestrutíveis, pese embora todos os dramas e reveses que vão sofrendo ao longo dos anos.
Duas vezes finalista do Prémio Leya, a romancista afirma não conceber a literatura sem um forte apego às personagens e afirma que, quando começou a publicar, em 2015, passou a valorizar ainda mais os livros.
O livro descreve de forma muito precisa a pressão imobiliária a que muitos habitantes do Porto estiveram sujeitos nos últimos anos. Escreveu este livro não apenas como ficcionista mas também como portuense preocupada com a sua cidade?
Sim, é uma realidade muito próxima. São as nossas raízes, a nossa cidade, a nossa gente. Não gostaria de um dia me sentir estrangeira na cidade onde nasci. Isto não significa que não tenha empatia por casos que aconteçam noutro lugar.
Enquanto cidadã, o que a chocou mais em particular nesta questão da expulsão dos idosos das suas próprias casas ao ponto de querer escrever um romance sobre o assunto?
A desumanidade de alguns proprietários e investidores, e o recurso à coação e à violência. Um caso flagrante foi o do empresário chinês que adquiriu um prédio no Bolhão, onde vivia uma família há cinquenta anos, e o mandou incendiar para obrigar os moradores a sair, o que resultou na morte de um deles. Ninguém merece passar por um horror destes. Quando se chega a este ponto, não há limites.
O poder político e a sociedade civil responderam como deveriam a este fenómeno?
Penso que despertaram tarde para este drama. Os direitos dos moradores deveriam ser salvaguardados no planeamento urbanístico inerente à transformação da cidade, mas os interesses económicos têm outro peso.
Entre o que o Porto ganhou e perdeu com as profundas transformações operadas na última década, para onde pende a sua preferência?
O Porto evoluiu muito nos últimos tempos e isso é bom. A elevação do centro histórico a Património Mundial da UNESCO e o facto de a cidade ter sido Capital Europeia da Cultura contribuíram muito para dar visibilidade à Invicta. Mas tenho pena de que algumas transformações descaracterizem a cidade e tirem lugar a quem lá pertence. A maioria dos edifícios reabilitados são hoje hotéis, hostels e alojamento local. Um portuense dificilmente consegue viver na Baixa.
Piedade, Madalena e Catarina representam três gerações diferentes de mulheres da mesma família e vivenciaram experiências muito distintas. Acredita, todavia, que o que as une é mais do que aquilo que as separa?
Sem dúvida; os laços, as memórias e os afetos que as unem são muito mais fortes do que as diferenças que existem.
Há personagens muito fortes na história. Como é o seu envolvimento emocional com as figuras que cria?
Costumo dizer que as personagens ganham vida. Dou por mim a falar com elas, a ouvi-las, a sondar o que lhes vai no pensamento e no coração. Posso gostar mais de umas do que de outras, como das pessoas fora dos livros, mas tenho de conviver com todas. Se o envolvimento não fosse profundo, acho que nunca passariam de figuras no papel. Não teriam autenticidade nem para mim nem para o leitor.
Este é o seu livro com ligações familiares mais fortes?
Também abordo as relações humanas e familiares nos outros livros, mas este é o que vai mais longe nessa matéria.
Teme que a pandemia - que manteve muitas famílias afastadas durante dois anos - tenha dissolvido ainda mais os laços familiares?
Não necessariamente. A pandemia virou as nossas vidas do avesso, causou estragos e deixou marcas, mas nalguns casos avivou as faltas, as saudades e os afetos. Um afastamento físico não tem de ser um afastamento emocional. Não se perde quem trazemos sempre connosco.
Há quem defenda que a estrutura tradicional da família está ameaçada. O que se perde com essa transformação?
As estruturas familiares são condicionadas pelas transformações sociais ao longo do tempo. Independentemente de o modelo ser mais ou menos tradicional, a perda de valores nucleares − como, por exemplo, lealdade, tolerância, solidariedade, respeito, empatia, gratidão, amor − compromete a essência da família. Isto poderá estar na origem de problemas atuais, tais como: ruturas, desresponsabilização, negligência e alienação parental, isolamento e abandono de idosos.
Embora ficcionais, os seus livros têm um forte apego à realidade. Não concebe os seus livros sem essa ligação?
Enquanto ficcionista, gosto de escrever sobre o que me rodeia e me inspira.
Escreve essencialmente ficção. O que lhe proporciona de único este registo?
O facto de tudo ser possível.
Que tal é a experiência de ter como editora Maria do Rosário Pedreira, conhecida pelo seu rigor e exigência?
Foi o que me aconteceu de melhor quando aterrei no meio editorial. A Maria do Rosário Pedreira é uma profissional exigente, íntegra e franca. Defende aquilo em que acredita, faz-me dar o máximo e está sempre lá quando é preciso. Prezo-a muito e é um privilégio trabalhar com ela.
Quais as figuras literárias que foram decisivas para a sua vontade de escrever?
Não houve figuras literárias decisivas, talvez um misto do que lia. Sempre pensei que ia começar por escrever um policial, porque passei uma parte da adolescência a ler esse género, mas isso não aconteceu. A vontade de escrever já lá estava, só foi preciso dar-lhe um rumo.
Seis anos separam o seu primeiro livro do mais recente. Apesar do tempo ainda escasso, deteta muitos sinais de mudança ou até amadurecimento?
Escrever tem sido um desafio. Gosto de aprender, procuro melhorar e sou exigente comigo mesma. Creio que isso se vai refletindo nos meus livros, mas ainda estou no início do caminho.
Vê-se como uma escritora de causas?
Não, gosto de escrever sobre o que me toca e o que a imaginação me traz.
Ao contrário do que intitulava o seu primeiro romance, para si todas as histórias são suscetíveis de serem contadas?
Sim, desde que as queiramos contar.
Quais são "os lugares das coisas perdidas" que tenta resgatar através da sua escrita?
Os meus lugares.
Foi finalista do Prémio Leya não por uma mas por duas vezes. O que pesa mais: a honra por ter sido destacada no meio de tantas centenas de autores ou, por outro lado, a sensação de ter ficado muito perto de ter obtido um prémio tão importante?
É, sem dúvida, uma honra ter sido escolhida entre centenas de autores e ter chegado à final. Não adianta ficar a olhar para o lado. Se um dia ganhar, tanto melhor.
Embora se tenha estreado na publicação em 2015, provavelmente os seus sonhos literários são muito anteriores. A escritora já existia muito antes de publicar pela primeira vez?
A escrita está comigo desde que aprendi as primeiras letras. Eu era a miúda que andava sempre a rabiscar qualquer coisa, que trocava os problemas de matemática pelas redações, que escrevia histórias de gaveta. Durante muito tempo, não me aventurei a mais. Mas escrevi o primeiro livro de um fôlego, para concorrer ao Prémio Leya, e foi o primeiro que publiquei.
É naturalmente uma leitora atenta desde que se conhece, mas, nos últimos anos, a sua ligação à literatura aprofundou-se com a publicação de três romances de sua autoria. Em que sentido a sua visão sobre os livros se alterou a partir do momento em que também é autora?
Percebi que a realidade é muito diferente do que eu imaginava. Valorizo ainda mais os livros, sobretudo pelo trabalho que dão a escrever e a publicar. O processo de escrita é intenso, exige tempo, dedicação e sacrifício. Tornei-me mais exigente em relação ao que leio e escrevo.
Vivemos tempos fortemente polarizados e de grande conflitualidade. Em que sentido a literatura pode ajudar a esbater essa tendência?
A literatura é cada vez mais um bem necessário. Enriquece-nos a nível humano e intelectual, faz-nos refletir e alargar horizontes, ter uma mente aberta. Ainda que se ocupe de retratos ficcionados, dá-nos diferentes visões do mundo e do outro, o que promove a empatia. É um espaço de diálogo interior e com o mundo.
Para si, livro acabado é assunto arrumado ou eles continuam sempre presentes em si?
Quando termino um livro, preciso de me distanciar e limpar a cabeça para dar espaço ao novo. Mas todos têm o seu lugar.
Já está mergulhada num novo processo de escrita?
Estou a desenvencilhar ideias. Mas faz parte.
