Não é consensual, não é sequer, ao que parece, geracional, mas a pequena-grande nipo-americana Mitski é bem capaz de ter roubado o ceptro à supernova norte-americana SZA. Há escândalo?
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Com SZA, como com o diabo, está tudo nos detalhes. Mas nela, a norte-americana de 34 anos que chegou ao Primavera Sound Porto como uma supernova — que é o mesmo que dizer que chegou como uma espécie de explosão que esvazia de uma só vez toda a sua energia nuclear — os detalhes atingem-nos tão subtilmente que quando os percebemos, a magnitude do estrépito é tal que já estamos aos seus pés. É coisa de que só os imperadores são capazes.
Aquilo que o Porto viu esta quinta-feira à noite no Parque da Cidade, foi uma odisseia musical que embarca numa viagem cósmica até às profundezas daquela alma artística. O triunfo foi total? Humm.
Há espanto cénico, sim
O espetáculo começa e vemos silhuetas ameaçadoras de gaivotas a rasar numa caixa colossal de LEDs. Visualmente, é hipnotizante. E ecoa no público o o primeiro bruaá, milhares de luzes brancas de telemóvel hasteadas no ar. Depois ela entra, o bruaá aumenta — mas não totalmente, é em degradê da frente para trás, como a idade dos espectadores, a juventude aferrada na frente, e ela é fulminante. Instantaneamente elétrica, hipergenética, SZA parece um corpo 3D full HD ali vivo à nossa frente, definida em detalhe até ao osso do pixel infinitesimal, e a iluminação e o design do cenário mudam imediatamente. Os LEDs que agora banham o palco têm tons que nos atiram para um mundo subaquático e tudo está perfeitamente sincronizado com os movimentos do corpo dela e dos quatro bailarinos que se enlaçam nela. Muda tudo outra vez de repente: a frente inteira de um navio está ali construída para apontar o curso daquela jornada pelo mar, e o mar também é o cosmos, surge um farol giratório a emitir feixes de luz.
Cada elemento do espetáculo é escrupulosamente pensado para garantir que o público tem uma experiência inesquecível. Cada música combina, rigorosa, obcecada, minuciosa, com o ambiente do palco, desde as ondas tempestuosas de “Low”, tocada em cima de um fundo de vagas violentas, de "Kiss me more”, que deflagra em cenas subaquáticas que vibram agora em várias cores, vimos até SZA pendurada numa bola de ferro de demolições, negra e gigante, a ondear.
Tudo é perfeito, mas…
Há qualquer coisa de sentimentalismo antigo que estala logo assim que se ouve uma música, qualquer uma, “Supermodel”, “Drew Barrymore”, “20 something”, “Love galore”, do primeiro álbum de SZA, “Ctrl”, de 2017, que é muito mais constante de temperatura, muito mais “soulfull” do que o seguinte, o estratosférico “SOS”, de 2022. Desde aí, ela dobra-se e desdobra-se em géneros, transacionando dinâmicas novas de R&B, hip hop, pop impudica, guitarradas de rock para o TikTok, e é nesse novo patamar que medra a sua impartível e continuamente crescente base de fãs. Mas não se esquece, SZA, que é dali, da soul, que vieram as raízes do seu sucesso. Por isso, quando vai lá atrás, às faixas sentimentais de “Crtl”, é nesses momentos que ela muda a pose, parece quase querer fazer o papel da acompanhante, e deixa misturar as suas harmonias vocais com a interpretação da melodia original cantada pelo público.
Mas, toda esta perfeição tem um mas, as 25 canções do seu set são todas tocadas de enfiada, sem paragens para respirar, há ali músicos ao vivo a tocar, colados nas laterais do palco, mas à medida que a avalancha corre e aumenta, não conseguimos, os mais velhos pelo menos, deixar de reparar que há nacos inteiros nas canções que entram pré-gravados, cordas, vozes de apoio, certas guitarras e beats, e tudo corre sem a alegria dos erros, porque os erros levam à superação. Não há improvisos, nem sempre interação, e isso tira ao espetáculo uma boa fatia da sua qualidade emocional.
Exemplo cabal: “Kill Bill”, uma das mais potentes canções de SZA, uma canção de vingança e desamor, o tema majoritário de SZA, surgiu ali num novo arranjo, levemente acelerada, a magnitude do original do disco embaçada, diminuída, mas foi justamente essa imperfeição, uma qualidade humana que devemos valorizar ao vivo, que fez dela uma das favoritas — porque SZA, afinal, também sabe falhar.
Os mais novos discordarão, preferem tudo cristalinamente igual, vivem entre os facsímiles infinitos do seu mundo cada vez mais digital, cada vez mais próximos do ecrã, sonham intimamente em mergulhar totalmente o corpo, os ossos e a carne até se fundirem com o vidro, até serem eles mesmo, transumanos, o seu próprio monitor.
A MItski a sorrir em 180 graus
Estarão já perdidos? Claro que não. E deram, ali a prova duas horas antes de SZA, quando preencheram, e maioritariamente, a maciça plateia que esteve a ver a Mitski. Provocação: a MItski teve mais gente do que a SZA? Pareceu que sim.
Mitski ameaçou-nos com a reforma, mas regressou com um novo álbum no final de 2023, “The land is inhospitable and so are we”. O disco da nipo-americana é biologicamente mais caloroso, mais orgânico, e ainda que seja também mais silente, ela ganhou espaço inerente de respiração.
Durante o seu set, 90 minutos, 25 canções, luzes a refulgir uma requintada negrura, tudo foi conduzido na direção de uma ópera particular de melodrama art-rock. Apesar de ser acompanhada por um septeto ao vivo, o espetáculo pareceu em grande parte uma encenação íntima de uma mulher só, toda vestida de preto aeróbico, como é costume nela e nos seus passos ginasiais, surrealisticamente ginasiais, dominando toda cena, o público todo na mão. Depois de partilhar mais do que um punhado de palavras adoráveis com a multidão — “meus amores [bruaá], eu amo-vos [mais e mais alto bruaá], obrigado por esperarem tanto tempo por mim!” — e agradecer aos fãs férreos da sempre, centenas de miúdos, maioritárias miúdas coladas às grades desde que o recinto abriu, Mitski encerrou o concerto com duas das suas maiores canções: “Nobody” e “Washing machine heart”, esta tocada em encore depois da multidão troar toda o seu nome. E acabou numa perfeita espargata, braços a ulular no ar, a cara estampada a sorrir a 180 graus.
Foi MItski melhor do que a SZA? Foi. Foi mais: o seu concerto foi o melhor dos 16 do dia. Ponto. Parágrafo.
E a “Sofa king” que continua a volutear
Por fim, mantemos: “Sofa King”, a pérola pós-punk que vem dentro da ostra sacarina dos Royel Otis com aquele refrão primaveril tão fatal, “You're so fucking gorgeous!”, essa que perfurou o céu e a cinzenta providência que anda a rondar o Porto e o festival e que hoje, sexta-feira, às 19 horas marcadas pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera, ameaça mostrar os caninos e a tromba de água, foi o momento mais inexplicavelmente feliz do primeiro dia. Durou só 3 minutos e 16 segundos, mas colou-se como uma lapa lucente ao coração. Já se tentou — e até com facas: não há forma de a desgrudar dali.
Hoje há mais 16 concertos
O 11.º Primavera Sound Porto segue hoje no Parque da Cidade, com mais 16 espetáculos em quatro palcos.
Por ordem de entrada em cena:
Máquina – Super Bock, 16.35.
Milhanas – Palco Porto, 16.45.
André Henriques – Plenitude, 17.40.
Mutu – Vodafone, 17.40.
Samuel Úria – Super Bock, 18.35
Crumb – Porto, 18.40
Classe Crua – Vodafone, 19.30.
This Is The Kit – Plenitude, 19.35.
Lambchop – Super Bock, 20.35.
The Last dinner party – Porto, 20.50.
Tropical fuck storm – Plenitude, 21.50.-
The Legendary Tigerman – Vodafone, 21.55.
Wolf eyes – Super Bock, 23.00.
Lana del Rey – Porto, 23.15.
Tirzah – Plenitude, 00.50.
Justice – Vodafone, 00.55.
Pergunta para queijo? E vai mesmo chover e trovejar? Pois… O melhor é mesmo ir de escafandro.