A ópera “Il trionfo del tempo e del disinganno” estará na sala Luis Miguel Cintra, do Teatro São Luiz, em Lisboa, entre esta quarta-feira e domingo.
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O JN falou com o encenador italiano Jacopo Spirei e a soprano Eduarda Melo – uma das protagonistas do espetáculo que é uma parceria com o Teatro Nacional de São Carlos – sobre um tema secular e ainda hoje universal.
A Beleza, o Prazer, o Tempo e o Desengano são os protagonistas da Ópera “Il trionfo del tempo e del disinganno”, de Georg Friedrich Händel, com libreto do Cardeal Benedetto Pamphili. A peça é filosófica mas assertiva, arrojada desde a génese e, como no nome, culmina num aparente triunfo do Tempo e do Desengano, refletindo um mote ainda hoje universal: “são temas contemporâneos ainda tão essenciais, especialmente nesta era, num mundo que está a mudar”, frisa o encenador italiano Jacopo Spirei ao JN.
Entre esta quarta-feira e domingo, o Teatro Nacional de São Carlos estreia no Teatro São Luiz, na sala Luis Miguel Cintra, esta peça secular, na qual as personagens Prazer, Tempo e Desilusão assumem forma humana para disputar a alma da Beleza.
Uma hora antes de cada récita, Cristina Fernandes, musicóloga, entra em cena na sala Bernardo Sassetti para lembrar o compositor Georg Friedrich Händel (1685-1759), e o contextualizar a música, a ópera e o que rodeou a sua criação: na altura da composição, inicio do século XVII, Händel estava impedido de escrever óperas em Roma devido a uma proibição papal.
O compositor chegara a Roma em 1707, decidido a apostar no mundo operático, coincidindo com a proibição papal da apresentação pública de óperas na cidade. Foi quando o Cardeal Benedetto Pamphili, autor de textos destinados a música, encomendou a Händel uma oratória com libreto da sua autoria, intitulada “La Bellezza ravveduta nel trionfo del Tempo e del Disinganno”.
Impedido de escrever uma ópera, mas não de usar os seus recursos formais, surgiu uma peça mais em formato concerto, como explica ao JN Jacobo Spirei. “A beleza do nosso trabalho é que às vezes nos pedem para fazer títulos muito específicos. E é algo que realmente gosto, porque gosto de limites, sinto-me muito mais livre quando tenho limites e gosto de ter um desafio e de o abraçar na totalidade”, começa por contextualizar, quanto ao desafio de encenar esta peça.
Confessa que sempre admirou Händel, e que sempre que lhe é pedido "para fazer algo dele", fica "feliz”. Neste caso em particular, foi uma “feliz coincidência”, destaca, realçando que “esta era uma peça que estava a explorar já há algum tempo”.
Adaptar à Ópera
Esta exploração ajudou Spirei num trabalho que, à partida, e pela génese da peça, traria sempre desafios adicionais: “ela não foi escrita oficialmente para o palco. É uma peça de concerto, então é concebida como uma conversa filosófica. Portanto, ela tem um ritmo teatral estranho, podemos dizer”, explica o encenador.
Para a levar a um palco e contar uma história coerente, tiveram "de se fazer ajustes, de a puxar em certas direções, para que tenha um ritmo mais teatral. Um exemplo simples, uma ópera precisa de terminar o primeiro ato, com uma espera, uma curiosidade sobre o que vai acontecer a seguir. E num concerto, isso não é tão crucial, e assim por diante”, reflete.
Segundo o italiano, a peça nasceu “quando um jovem Händel, tendo trabalhado na Alemanha, quis ir, para se tornar no compositor da ópera que almejava, para Itália, porque era o sítio certo para isso acontecer. Estamos a falar do século XVIII, para um compositor entender a ópera, tinha de ir para a Itália. E para Händel, chegar a Itália foi uma viagem, que o levaria à maturidade de composição”, conta.
Chegado a Roma, o jovem compositor tornou-se logo “muito popular entre os bispos”, e foi quando o Cardeal Benedetto Pamphili decidiu escrever a peça alegórica para ele, para suas habilidades. "Ao fazer isso, temos uma perspetiva de um homem mais velho, do ponto de vista do libreto e a perspetiva de um homem mais jovem, do lado da música”, frisa o encenador.
"Isso, de certa forma, significa que, de um lado, temos o Prazer, que representa a juventude e a desprezibilidade, contra o Tempo, que é a idade mais velha, e que vai junto com o Desengano, que em italiano tem dois significados: é visto através de mentiras, mas também tem o elemento de algo ou alguém ser desapontado. Então, é um elemento de desapontamento e o lado mais cínico que vem com a idade - para muitas pessoas pelo menos”, explica Jacobo Spirei.
Na peça, a história decorre “entre um homem mais velho, a sua esposa, e duas filhas. Uma é o Prazer, que nunca quer crescer, e, entre elas, há a Beleza, a juventude. E o debate da peça é se devemos construir o nosso futuro sendo sensatos e inteligentes, e criar para nós um futuro no céu, ou devemos apenas viver a vida e aproveitar o momento e viver ao máximo. Na época, a moral óbvia, a moral católica óbvia, é que se deve ser uma pessoa boa, ter boas morais, bons valores, orar e honrar Deus, ao contrário de uma ideia um pouco mais satânica de prazer, que envolve sexo, comida, indulgir em beber e tudo mais. Mas trazer isso para a Roma, no XVIII, sendo um estado papal (...) é tão interessante". Tanto para o público italiano como para o português, "sendo um país católico, onde vemos essa ideia de pecado, vemos essa ideia de duplas normas, dupla moral: devemos comportar-nos bem porque não devemos ameaçar a ordem, ou podemos ameaçar a ordem por ser amoral ou imoral e rebelde? Essa é a questão central da peça”, frisa o encenador.
No fundo, a ópera “trata de temas contemporâneos, que são tão essenciais, especialmente neste tempo, num mundo que está a mudar, um mundo que está preocupado com o futuro, um mundo em que o otimismo ou qualquer forma de fé em vida e em seres humanos está diminuída”, conclui.
A exigência e a Beleza
Por todas as questões referidas na peça, aos cantores, sobretudo às personagens Beleza e Prazer, é exigida uma técnica vocal superlativa, e toda a obra está carregada de expressividade. Não podendo contar com os habituais expedientes cénicos, Händel teve de explorar todo o potencial de eloquência musical para caracterizar as diferentes personagens.
Eduarda Melo, soprano portuguesa que interpreta Beleza, explica ao JN como esta obra é efetivamente “bastante exigente” a nível técnico, tendo em conta que cada personagem tem bastantes árias para cantar. “No meu caso, tenho nove árias, dois quartetos e um dueto, o que se torna realmente um grande desafio em termos de resistência vocal. Também é uma obra que explora várias características vocais, ou seja, tanto podemos estar a cantar uma ária cheia de coloratura, como logo a seguir temos árias de uma expressividade incrível, em que é preciso utilizar um grande legato e uma grande linha vocal”, refere.
Quanto ao tema da peça e ao triunfo do Tempo e do Desengano, Eduarda Melo acredita que "a questão do triunfo do Tempo e do Desengano fica bastante em aberto no final deste espetáculo. Sinto que é como num bom filme, quando o espectador acaba o filme e fica a pensar no que é que poderia acontecer a seguir. E acho que é a forte mensagem deste encenador, do Jacopo Spirei: no fundo, o que nós estamos aqui a tentar reproduzir é mais um ritual de passagem entre a vida jovem, do jovem adolescente para a vida adulta. E também a procura da sabedoria, do autoconhecimento, saber um pouco mais acerca de nós próprios. Acho que esta é a questão fundamental na visão do encenador”, conclui a soprano.
A Ópera “Il trionfo del tempo e del disinganno” estará na sala Luis Miguel Cintra nos dias 9, 11 e 13 abril, às 20 horas na quarta-feira e na sexta-feira e às 17.30 horas no domingo.