João Cardoso encena peça de Martin Crimp, nos 26 anos da companhia Assédio. Estreia esta quinta-feira no Teatro S. João, no Porto, e ficará em cena até ao dia 3 de março.
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Martin Crimp escreveu “Terno e cruel” um ano depois da invasão do Iraque, em 2003, justificada pela existência de “armas de destruição maciça” (nunca encontradas), pela necessidade de derrubar um tirano (em tempos um aliado), e pelo desígnio maior de “combater o terrorismo”.
É esse combate, capaz de todas as violências sob a caução formal ou informal dos Estados, o motor da peça do britânico – adaptação livre de “As traquínias”, de Sófocles, que estará em cena no Teatro Nacional São João, no Porto, até 3 de março.
Os contextos mais próximos da montagem da Assédio, companhia que celebra 26 anos com a sétima concretização cénica de um texto de Crimp, mudaram de geografia, mas também na invasão da Ucrânia se alegou “terrorismo” e a atual chacina em Gaza leva o selo do “combate ao terror”.
É uma ideia com costas largas. Tão largas que o protagonista do espetáculo – o herói mítico Héracles na peça grega, o general impiedoso no texto de Crimp – arrasa uma cidade (sob o pretexto do combate ao terror) com intuitos sexuais: não é uma recaptura de Helena, como a que motivou a guerra de Troia; é mesmo o desejo de possuir uma indígena.
À espera do militar (João Castro) não está uma paciente e abnegada Penélope, mas sim uma mulher de têmpera que se recusa a cumprir o papel de vítima – e se o marido, e as suas operações, são o gatilho da situação, Amelia (Ângela Marques) é o verdadeiro centro do espetáculo (uma modernidade que Crimp assinalou na tragédia de Sófocles). São as suas emoções e decisões que dominam a cena.
A encenação de João Cardoso conta com uma bela estilização cénica de Sissa Afonso, que dá corpo ao “não-lugar” idealizado por Crimp: o hotel anónimo junto a um aeroporto. O coro da peça original é aqui assumido pelas três empregadas de Amelia, que produzem uma série de interlúdios musicais e coreográficos, emprestando ritmo e plasticidade à produção.
E porquê esta insistência, esta longa relação de “comentário” com o autor inglês por parte da Assédio? A ironia é a chave, diz João Cardoso. “O Crimp fala das coisas mais brutais e desumanas, mas sempre com uma enorme carga de ironia, sarcasmo e lirismo”.