Depois de ter sido escolhido para passar no Festival de Cannes, o novo filme do cineasta Tiago Guedes teve ante-estreia no Teatro Municipal Rivoli, no Porto, e conversa com o público no final.
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Foi uma viagem entre o primeiro filme para cinema e o mais recente do realizador Tiago Guedes que a dupla sessão no Rivoli proporcionou, anteontem à noite. Para o cineasta, significou rever "Coisa Ruim" na casa onde se estreou, em 2006, como primeiro filme português a abrir o Fantasporto; e foi a ante-estreia nacional de "Restos do Vento" com lotação esgotada e uma conversa com a audiência que se prolongou para lá da meia-noite.
O realizador portuense admitiu ter sido "sem intenção" a recorrência de temas nas duas longas-metragens. Ambas têm a sua ação em aldeias do interior do país - a mais antiga na região da Serra da Estrela, a segunda em Meimão, pequena localidade de Penamacor, na Beira Baixa -, e versam sobre tradições, superstições e vivências coletivas da culpa.
Neste salto de 16 anos, evidenciam-se caminhos que despontavam no primeiro filme (co-realizado com Frederico Serra) e que neste novo "Restos do Vento", que ontem estreou em todo o país, são trilhados com mais certeza e intensidade.
Um desses caminhos foi apontado pelo ator João Pedro Vaz, que entra no elenco de ambos os filmes, assim como Gonçalo Waddington. "[Em Coisa Ruim] havia já essa preocupação de trabalhar com os atores, em secundarizar coisas mais técnicas, e o texto vai ganhando densidade. Isso já me impressionou um bocadinho", referiu o ator, que esteve presente na sessão, juntamente com outros membros do elenco.
Outro desses caminhos é a quase ausência de música, tirando no início e no final, e as músicas de cena, como as da festa da aldeia. "Estou a silenciar muito os meus filmes", admitiu Tiago Guedes, em resposta a uma espetadora que assinalou esse facto.
Há uma profusão de camadas de som, com o ruído das hélices eólicas que domina a aldeia sempre presente, assim como o ladrar dos cães. Todavia, o filme não tem banda sonora propriamente dita. "A razão é muito simples. O cinema é uma arte manipuladora, estamos sempre a manipular emoções. Prefiro tirar eu as minhas próprias conclusões do que estar a ser manipulado pela música", explicou o cineasta. "Os meus filmes estão a rejeitar a música", sublinhou.
Elenco sólido
O elenco de "Restos do Vento" conta com atores portugueses com um currículo sólido, como é o caso do protagonista Albano Jerónimo, e ainda Nuno Lopes, Isabel Abreu e a jovem Leonor Vasconcelos. Todos sucumbem a tormentos íntimos, exceto a personagem de Jerónimo.
Depois de um episódio de violência de que foi vítima, durante a "Festa dos Rapazes" -, que evoca rituais de iniciação pagãos portuguesas e de outros países europeus, sem retratar nenhuma em particular - "Laureano" cresce como o tolo da aldeia, vivendo miseravelmente num casebre, vagabundeando rodeado de cães vadios, numa serena e alegre inocência que a comunidade desdenha.
"Judite" (Isabel Abreu) é talvez a única exceção e sua cuidadora... até ser posta a uma cruel prova e querer sacrificá-lo. Pode-se pensar que "Laureano" lavou a sua tragédia pessoal na candura. O trabalho de ator que João Pedro Vaz elogiou é notório nesta personagem, que parece tão despojada, mas surge cada vez mais forte, numa notável interpretação de Albano Jerónimo.
No ambiente onde a tragédia se vai insinuando, ele consegue comover e fazer rir. "Foi um trabalho muito consciente com o Albano, porque eu não queria que ele caísse no ridículo, queria que ele fosse puro, mas não que fosse cómico. Havia ali uma linha ténue", admitiu Tiago Guedes, na conversa com o público do Rivoli.
Em vez de "objetivos", preferiu falar das ideias que quis transmitir com "Restos do Vento". Referiu "a falta de espaço para a fragilidade do mundo" e "a ideia de que o bem vai vencer no fim, quando não é bem assim". E ainda deixar uma pergunta: "De onde vêm estas ideias de violência que se transmitem, vêm de trás ou nascem connosco?".
"Restos do Vento", produzido por Paulo Branco, fez parte da Seleção Oficial de Cannes - Fora da Competição do Festival de Cannes, em maio. Há 16 anos que um realizador português não subia a passadeira vermelha daquele que é considerado o mais importante festival de cinema do mundo. O realizador é também autor do argumento, em co-autoria com Tiago Rodrigues, o encenador, dramaturgo e argumentista que é atualmente diretor do Festival de Avignon, em França.
Os cães de "Laureano"
Os cães que seguem o protagonista para todo o lado não são, como poderá parecer, animais treinados. São animais abandonados que foram recolhidos e escolhidos para o filme, com um técnico que cuidou deles e os "manipulou" para os desempenhos. O ator Albano Jerónimo dedicou-se a criar uma relação com eles, passando muito tempo com os cães fora de cena, e usando sempre a mesma roupa nas filmagens, com o cheiro dos animais. Apenas um animal, que morde a personagem "Samuel" numa das cenas, é um animal treinado.