Tiago Guedes: "Sentimos uma pressão ética para apresentar esta edição do DDD "

Tiago Guedes, diretor artístico do Festival Dias da Dança
Leonel de Castro/Global Imagens
A parede de lousa do escritório de Tiago Guedes, diretor artístico do Teatro Municipal do Porto e do Festival DDD (Dias da Dança), repleta de anotações a giz, mostra bem o que foi a loucura e a incerteza dos últimos meses. Foram cinco programas redesenhados para uma versão final que apresentará 22 espetáculos, quatro internacionais e seis estreias mundiais. A 5ª edição do DDD é a mais nacional de sempre. Será servida em formato híbrido, no digital e ao vivo, entre os dias 20 e 30 de abril.
Quantos programas foram desenhados para esta edição do DDD?
[Risos] Até ao desenho final, foram feitos cinco desenhos. Fizemos um primeiro programa, para o DDD 2020, que foi cancelado. O primeiro confinamento aconteceu a menos de um mês do Festival Dias da Dança 2020. Não tínhamos o traquejo nem a endurance para encontrar uma solução rápida. O segundo desenho foi imaginar um "copy paste" de 2020 para 2021, com os mesmos artistas. Mas esse desenho teve de ser adaptado, porque inevitavelmente alguns artistas não tinham disponibilidade nessa data. Foi então feito um redesenho sobre esse programa. Depois fizemos um programa completamente digital quando, a 15 de janeiro, se soube que iríamos ter um novo lockdown. Mantivemos o ADN do festival numa edição digital, que mantém todas as vertentes: espetáculos, masterclasses, conversas e até mesmo festas online. Quando soubemos da possível reabertura dos teatros, agendada para 19 de abril, sentimos a obrigação - e entusiasmo! - de voltar a acrescentar uma camada de espetáculos ao vivo, que complementarão os espetáculos online. Portanto, cinco desenhos até agora.
Como foi programar um modelo híbrido de festival?
Foi muito interessante. Estávamos a três meses de o Festival acontecer e já vínhamos de uma temporada de dupla existência. A temporada 2020/21 já foi salvaguardando possíveis reconfinamentos e também os 50% de lugares disponíveis. Desde setembro que temos espetáculos só para o online e espetáculos com dupla existência: física e online. É importante saber tirar frutos do digital, usando-o de forma complementar e não como forma de substituição. O digital representa outra experiência, tanto para o público como para os artistas. No TMP somos avessos a transmitir puras captações do espetáculo, com um plano fixo ou com algumas aproximações. Tudo o que temos feito é um trabalho artístico para o digital a partir de outro objeto artístico. Estamos muito contentes. Sentimo-nos com coragem para imaginar uma edição completamente digital, que vai ter muito alcance. Podemos ter uma plataforma com programadores de todo o Mundo, que não podem viajar, mas que podem, ainda assim, ver os artistas nacionais que este ano vamos ter.
Foi um processo pacífico com os artistas?
Desafiámos artistas que ainda tinham tempo para fazer uma curva no seu trabalho e estrear no digital. Alguns deles tiveram de mudar o chip, por saberem que vão estar em modelo físico e também no digital. Assumimos isto como sendo um desafio artístico. Mas não foi um processo unilateral. Só podemos assumir isto em conversa com os artistas e com os parceiros. Com alguns foi mais fácil; com outros, mais difícil. Mas este modelo híbrido serve vários propósitos, entre os quais o de salvaguardar esta edição, que não podia voltar a ser cancelada. E salvaguarda também o trabalho dos artistas, que desta forma são desafiados para outro modo de fazer e pensar artisticamente.
Esta versão final é o festival que queriam fazer ou é o festival possível?
É um bocadinho das duas coisas. É o festival possível na medida em que é uma edição muito menos internacional. Só há quatro espetáculos internacionais. É propositado. Por um lado, por questões de agenda: há espetáculos que estavam pensados para o ano passado e que este ano não puderam vir; por outro lado, por questões pandémicas: neste momento, há uma série de países europeus que não permitem viajar ou que obrigam a fazer quarentenas grandes, como os franceses. Daí termos só quatro projetos internacionais no digital. Ou seja, não há nada ao vivo do programa internacional. Este ano o foco é colocado nos artistas nacionais, que precisam destas montras de visibilidade e destes contextos de apresentação. Pessoalmente, estou muito contente com esta edição. É a mais nacional de todas, sem ser nacionalista. É uma oportunidade. Os artistas têm uma grande plataforma de divulgação no nosso site. Apresentamos nove espetáculos em estreia mundial nos nossos palcos e nos palcos dos teatros parceiros.
Houve alguma pressão da parte dos artistas, uma vez que este ano a maioria estaria disponível para trabalhar?
Não sentimos essa pressão, estivemos sempre em diálogo desde a edição passada. Desde logo, foi um diálogo em que houve concordância para fazermos a edição de 2021, sendo que alguns artistas apresentaram o seu espetáculo em temporada. Fomos sempre oferecendo alternativas futuras para a apresentação dos projetos. A pressão que existiu é quase ética, é a pressão de que a tua instituição, ainda por cima pública, tenha um serviço público - tanto para o público como para os artistas. Para o público, para que continue conectado com um serviço público de cultura; para os artistas, para que possam contar com as instituições no momento que estão a atravessar. É um momento muito complicado para as artes em geral e para as artes performativas em particular.
Há alguma temática ou fio condutor nos espetáculos que vão ser apresentados?
Não há um fio condutor. O DDD nunca foi um festival temático. Sempre foi um festival que quis e quer apresentar o quão diversa é a dança contemporânea. Mas o que é certo é que daqui emanam quatro temas, que até são a base de quatro conversas que vamos ter. As conversas fazem parte do ciclo "Dança Iminente". O primeiro tema chama-se "Oráculos e transcendência": é sobre um conjunto de espetáculos premonitórios deste estado mais introspectivo, mais oracular, em que o corpo pode falar, como acontece no caso das criações de Isabel Castro, Luísa Saraiva, Sara Anjo e Teresa Silva, Rita Diamond Casais. O trabalho destas artistas cruza estas temáticas. Temos um segundo tema: "Inteligência artificial e sensorial", ou seja, um conjunto de espetáculos que cruzam a inteligência dos corpos, quer sejam corpos robotizados ou mais sensíveis, como é o caso do novo espetáculo do Marco da Silva Ferreira com o Jorge Jácome. É um espetáculo a dois, composto por quatro humanos e 12 robots. É uma das estreias mundiais que aguardamos com grande curiosidade. Outro tema: "Produtividade e Procrastinação", ou seja, como é que uns artistas se tornam muito produtivos e outros caem num estado de procrastinação, mais introspectivo. Vamos ter uma conversa muito interessante entre o Victor Hugo Pontes, um coreógrafo muito produtivo, cujo motor é o constante trabalho, e o João Fiadeiro, que está numa fase de paragem, de grande reflexão. Há um quarto tema chamado "Hot bodies & clubbing: práticas para uma evasão possível", que aborda este estar social que desapareceu, com as discotecas e as festas fechadas. Como é que este corpo social se reencontra? Temos duas estreias que cruzam estes universos. Por um lado, o espetáculo de abertura, "Bate-fado" de Jonas&Lander, que pesquisa o que eram estas casas de fado no início do século passado. Os clubes onde se cantava, onde se dançava, onde se bebia. Eles estão a fazer um trabalho antropológico e coreográfico sobre o que seria a dança naquela altura. Um pouco como o flamenco, que foi sempre uma arte que balança entre a música e a dança, era assim o fado nos seus primórdios. Ou o Renan Martins, que vai estrear "Viaduto", um trabalho sobre as danças sociais nos viadutos no Rio de Janeiro, e sobre as festas à tarde no espaço público. Há um espaço social que o corpo deixou de ocupar.
Como vão decorrer as masterclasses?
Inevitavelmente, o projeto de formação é muito menor. Haverá apenas duas masterclasses online. Uma, com o Ballet Nacional de Marselha, agora dirigido pelo coletivo (La) Horde e Mathilde Monnier; outra, com a própria Mathilde Monnier; e outra ainda com dois bailarinos do Ballet Nacional de Marselha. As pessoas podem inscrever-se através do site.
As iniciativas do Corpo+Cidade vão decorrer no espaço público ou vão ser substituídas?
Não. Gostamos muito desta parceria com o Balleteatro, que mostra as cidades parceiras. Os espetáculos serão gravados no espaço público e transmitidos online.
Há também um programa forte de filmes de dança?
Desenvolvemos um trabalho muito forte para o website. Por exemplo, vai ser possível ver o espetáculo do Jonas&Lander e, a seguir, assistir a um documentário sobre eles. Também vai ser possível entrar na conversa deles. Esta plataforma permite carregar outros materiais, para que o público possa não só descobrir as novas obras como ver o que estes artistas fizeram para trás. Nós somos co-produtores, com a RTP, de uma série de documentários chamados "Portugal que dança", e ainda não os tínhamos emitido. Demos conta que sete dos 15 documentários são sobre artistas que estão a estrear peças no DDD. É o contexto ideal para os vermos. Há também um documentário do Miguel Pereira, à parte desta parceria com a RTP, que se debruça sobre como é fazer um espetáculo e não sobre o espetáculo. Serão oito documentários no DDD.
Ainda assim, há sempre um espetáculo por dia presencial.
Sim. A ideia de entrar em modo festival não fazia muito sentido. Devemos continuar cautelosos, para desconfinarmos tranquilamente. Teremos apenas um espetáculo por dia, ao vivo, sempre às 19 horas. Os espetáculos são sempre em sítios diferentes: um dia no Rivoli, outro no Teatro Nacional S. João e outro dia no Constantino Nery, para as pessoas não terem de andar de um lado para o outro. Haverá seis espetáculos em estreia. Quem quiser, depois de cumprir o dever de recolhimento, terá um espetáculo online às 22 horas.
Os parceiros são os mesmos das edições anteriores?
Exatamente os mesmos, incluindo aqueles que este ano não recebem espetáculos, como o Coliseu, que é um parceiro de quem gostamos muito. O Coliseu iria receber a coreógrafa sul coreana Eun-Me Ahn, que vai passar só no online. No entanto, é nosso parceiro de divulgação digital e vai transmitir alguns espetáculos gratuitamente, nomeadamente os de abertura e de encerramento. Todos os parceiros continuam: as Câmara do Porto, de Gaia, de Matosinhos e de Viana do Castelo, que este ano recebe dois espetáculos, bem como Serralves, Teatro do Bolhão, Balleteatro e os mecenas Fundação BPI/La Caixa. O grupo de apoio embarcou connosco nesta aventura quando tudo era ainda apenas digital. Agora faz ainda mais sentido. Todos queremos espetáculos ao vivo também.
Muitas das estreias são de criadores repetentes. É interessante que o público consiga, através do DDD, ter um histórico?
Sim, o Jonas&Lander, a Ana Isabel Castro, a Catarina Miranda, o Marco da Silva Ferreira são repetentes. É muito importante, no trabalho de programação, ir seguindo os artistas, porque o trabalho deles só se desenvolve à medida que é suportado. É importante dar apoio e não apresentar 'ad hoc'. É preciso investir na criação e no risco, dar o máximo de espaço possível para os artistas poderem experimentar e falhar. E também queremos que o DDD sirva de rampa de lançamento para os artistas. E gosto da ideia de que quem nos segue sabe que pode acompanhar a carreira de determinado artista.
Este é também, provavelmente, o DDD mais jovem.
Sim. A nível nacional há uma geração muito jovem, aqui representada pela Catarina Miranda, Ana Isabel Castro, ou Jonas&Lander, e outra não tão jovem mas com um coreógrafo jovem como o Marco da Silva Ferreira. Há também uma segunda geração, a do João Fiadeiro, da Cláudia Dias, do Miguel Pereira, que são pessoas com quem trabalhamos ou com quem tivemos aulas. Agrada-me texturar a programação do DDD desta forma, com coreógrafos que apresentam a segunda obra, como a Ana Isabel Castro, e outros com uma longa carreira. Este é o ADN do DDD: um festival intergeracional que pretende mostrar quão diversa é a dança contemporânea.
No leque internacional, que espetáculos o público pode esperar?
São quatro espetáculos que estavam na edição de 2020. Selecionamos espetáculos que marcam quatro gerações diferentes e quatro estéticas da dança contemporânea. E houve o cuidado de escolher trabalhos que resultem bem no digital. A abrir, teremos o Ballet Nacional de Marselha, dirigido pelo coletivo (La) Horde, com o espetáculo "A room with a view", com o dj Rone. É um espetáculo sobre as questões da adolescência e da juventude, as ansiedades, o ato físico, o ato sexual, cheio de energia, algo negro também. É um vídeo muito bem filmado no Théâtre de Chatelet. No oposto, temos um espetáculo sobre o corpo contemplativo, que se conecta com a pintura barroca a partir de uma sinfonia de Mahler. É o espetáculo "(B)Reaching Stillness" da suíça Lea Moro. Atravessando o Oceano, do Canadá chega a coreógrafa Catherine Gaudet , com "L'affadissement do merveilleux". Todos os bailarinos estão de olhos fechados. É só sobre a temperatura corporal, sobre o que é isto de estarmos juntos mesmo quando não vemos os outros. É uma peça muito bonita, fala dos tempos de hoje, desta vontade de nos conectarmos. Parece que foi feita na pandemia, mas é de 2017. Para terminar, "North Korean Dance", da sul-coreana Eun-Me Ahn, que faz uma pesquisa sobre a Coreia do Norte, esse país hermético que não conhecemos pelas melhores razões, mas que tem uma relação com o corpo muito especial nas danças sociais, nas danças de salão e nas paradas militares. Foi um trabalho de pesquisa coreográfica. Um espetáculo de muita pesquisa antropológica, sobre o que podem ser estes corpos sociais.
E Please, Please, Please?
Esse espetáculo, como tem o português Tiago Rodrigues, é um meio-meio. Mas como também tem produção suíça, sim, pode ser considerado internacional. É um espetáculo escrito pelo Tiago Rodrigues para La Ribot, coreógrafa espanhola radicada na Suíça, e para Mathilde Monnier, uma das mais importantes coreógrafas francesas. É uma peça sobre o que queremos deixar para os nossos filhos e netos. Uma peça muito sensível e muito bem escrita, como são todas as peças do Tiago Rodrigues. É uma peça híbrida, com uma grande relação com o teatro, aliás como é a do Victor Hugo Pontes com texto do Gonçalo M. Tavares.
