Criador português deixa Teatro Nacional D. Maria II e assume direção do Festival de Avignon em setembro de 2022
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"A felicidade é inevitável mas começa a ser substituída pela ansiedade da estreia." Faltava pouco mais de uma hora para subir ao palco "O cerejal" de Tchékhov, peça de abertura da 75ª edição do Festival de Avignon, encenada por Tiago Rodrigues - Isabelle Huppert no papel principal, no público duas mil pessoas -, quando o criador atendeu o telefone. Feliz, acelerado, as ideias organizadas como sempre.
"O salto que dou, se alguma coisa tem de natural, é Avignon ser o maior projeto de democratização e de descentralização que conheço. É teatro popular que alia uma grande exigência à inovação e à descoberta de vozes novas." Era a reação clarividente ao facto de a França o ter escolhido para dirigir o seu festival maior. Definindo o festival, ele definiu-se. Tiago Rodrigues, 44 anos, ator, encenador, dramaturgo, move-se pela democratização do teatro, pela liberdade, por uma democracia plural. Basta estar atento ao seu trabalho e ao seu discurso.
No dia em que se consagrou como o primeiro português, em 75 anos, a abrir o Festival de Avignon, em França - ele que já por lá apresenta as suas criações desde 2015 -, ficou também a saber-se que escrevera "uma carta de amor" a esse mesmo festival, donde resultou a sua nomeação. A partir de 1 de setembro de 2022 será o primeiro estrangeiro a dirigir aquele que é o maior e mais importante evento de artes performativas do mundo - e o mais político, também.
Tudo isto aconteceu esta segunda-feira - o anúncio ao meio dia, a abertura do festival às 21 horas - e não cabe em declarações de circunstância, não só porque nenhum criador português o conseguiu antes, mas sobretudo por aquilo que significa do ponto de vista artístico e social, hoje e daqui em diante. Cá e lá.
"Sinto-me em casa e feliz por saber que o meu amor foi correspondido. Estamos noivos, eu e Avignon", afirmou sem escamotear o peso da responsabilidade. "Sou o primeiro não francês a ser escolhido para dirigir este festival. É uma responsabilidade enorme. Avignon é a celebração da curiosidade e da inquietação. O público vai ao festival como quem vai ao País do Teatro. E isso implica grandes desafios."
Por outro lado, a sua nomeação é também um poderoso gesto político. "É a afirmação da ideia de uma França aberta e inclusiva. Um país que, desta forma, mostra estar aberto ao diálogo, ao encontro com o outro, e disponível para continuar a trabalhar por uma sociedade mais justa e mais livre."
Proposta "cheia de poesia"
Tiago Rodrigues, atualmente a cumprir o terceiro mandato como diretor do Teatro Nacional Dona Maria II, em Lisboa, deixará o lugar "nos próximos meses". Depois, sucederá ao dramaturgo francês Olivier Py, que desempenha o cargo desde 2014. Mas a linha de sucessão inclui também Jean Vilar (1912-1971) , fundador, diretor do festival durante 25 anos e memória omnipresente no evento.
Apesar do peso da responsabilidade, em Avignon a escolha foi simples e unânime: "Impôs-se de forma evidente, quase doce", enalteceu a ministra da Cultura de França, Roselyne Bachelot, sublinhando que a proposta feita pelo português é "ambiciosa" e "cheia de poesia". A responsável enfatizou ainda o seu espírito europeu e o seu forte desejo de coesão territorial.
Já a ministra da Cultura portuguesa, Graça Fonseca, realçou "o percurso cívico, artístico e humanista de inegável relevância e coerência" de Tiago Rodrigues, sem esquecer a postura de "comprometimento com o seu tempo", a apologia da liberdade em cena" pela qual se pauta e a "capacidade de construir pontes".
"Um gesto de força"
Não há duas maneiras de olhar para a carreira de Tiago Rodrigues, filho de uma médica e de um jornalista, distinguido com o Prémio Pessoa em 2019. "É uma carreira fulgurante e meteórica, de mérito próprio", vinca Tiago Bartolomeu Costa, crítico e programador independente, para quem esta escolha está impregnada de "simbolismo" e de "comoção".
"Ele é um agente cultural que é um agente político, pelo que há nisto uma certa justiça poética", diz. "A nomeação de um estrangeiro - Avignon é o barómetro de uma cultura tida como exceção - é um gesto muito forte numa França que caminha de forma perigosa para o liberalismo radical. Mas é também o reconhecimento da longa história de afeto entre os dois países."
Aliás, Rodrigues reconheceu-o logo na conferência de imprensa, ainda a quente, poucos minutos depois de saber que fora escolhido: "Agradeço a França, sociedade diversa e aberta, que acolheu tantos portugueses, emigrantes e exilados. Entre eles, o meu pai, que escapou à ditadura portuguesa. Agora, acolhe o seu filho."
O diretor artístico do Teatro Municipal do Porto, Tiago Guedes, também saudou a escolha. "Ao contrário do que se pensa, Portugal não é periférico em termos culturais. Tiago Rodrigues é um dos grandes encenadores do mundo, e esta nomeação, que é óbvia, resulta do trabalho consequente de um criador, que se revelou também um programador de mão cheia."
Rodrigues enfrentará desafios pesados, como ontem alertou Olivier Py, mas o festival não terá desafio menor, garante Bartolomeu Costa. "Ele sabe para que serve o teatro e Avignon vai ter de aprender a lidar com uma abertura e um questionamento impossíveis de prever."
Já esta terça-feira, o diário "Le Monde" referiu-se ao trabalho de Tiago Rodrigues em "O cerejal", duas horas e meia de peça, como "livre, generoso mas confuso".