"Estava cansada de cantar e de fazer toda a gente feliz". A sua vida foi pontuada pela dor e pelo êxito estrondoso.
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Zoom para 4 de julho de 1976: Tina Turner está a correr sozinha numa estrada de Dallas, EUA, é de noite, muito tarde, ela corre sem olhar para trás, a cara cheia de susto. Horas antes fora insultada dentro do avião e depois, no carro a caminho do hotel, levou socos na cara - sentiu o sangue, como já era usual, a escorrer-lhe por dentro da garganta. Tem 37 anos, já se chama Tina Turner, e está a fugir da relação abusiva com Ike Turner, o homem que conheceu em 1956 e com quem esteve 20 anos, até àquela noite de 1976 em que fugiu enquanto ele dormia.
Foi Ike Turner, músico, marido violento e abusador, que a fez, que lhe deu nome, que quase a matou à pancada. Mas depois Tina ressuscita para ser "rainha do rock and roll".
Tina Turner, nascida Anna Mae Bullock a 26 de novembro de 1939, Brownsville, Tennessee, EUA, família pobre dos campos de algodão, abandonada por pai e mãe aos 15 anos, Tina morreu ontem na Suíça, na casa de Küsnacht, perto de Zurique. Tinha 83 anos. Não dava concertos desde 2009.
"É com muita tristeza que anunciamos o falecimento de Tina Turner. Com a sua música e a sua paixão sem limites pela vida, encantou milhões de fãs, inspirou as estrelas de amanhã", disse um representante em comunicado. "Hoje despedimo-nos da querida amiga que nos deixa todo o seu maior trabalho: a sua música. Toda a sincera compaixão para a família. Tina, sentiremos muito a tua falta".
A causa da morte é desconhecida, mas sabíamos que a artista sofreu um derrame cerebral em 2013, um cancro intestinal em 2016 e um transplante de rim em 2017 - doado pelo atual marido, o extremoso Erwin Bach, com quem casara em 2013.
Viu morrer dois filhos
Os seus últimos anos são duríssimos: em 2018 vê o filho mais velho, Craig, morrer de suicídio aos 59 anos; e em dezembro de 2022 perde o filho Ronnie para um cancro no cólon aos 62 anos. Deixa dois filhos: Ike Turner Jr, 65 anos, Michael Turner, 64, ambos filhos de Ike.
No seu renascimento pós-1976, Tina trabalhou arduamente em shows em Las Vegas, lançou discos solo de vendas modestas e fez grandes tournées pela Europa. Mas em 1984 tudo muda com o sucesso explosivo de "Private dancer", em que passa de estrela manipulada para deusa total do rock ressuscitada. O álbum tinha um single imortal: "What"s love got to do with it" e faz dela uma estrela de 44 anos.
Em 1985 já estava no palco do Live Aid em Filadélfia e teria um encontro memorável com Mick Jagger - "fui eu que o ensinei a dançar", disse ela mais tarde -, que arrancou a minissaia de couro preto de Tina a meio do espetáculo, deixando-a em collants. Tina sorri, passa os dedos pela juba de leão e diz isto, gloriosa: "Eu sei, é apenas rock and roll, mas eu adoro!". Disse-o naquela voz robusta e rouca, a boca enorme, cheia de energia. Era uma voz poderosa, uma mezzo-soprano crua e selvagem, com alcance de quatro oitavas. Mas, mesmo quando exalava força sexual como artista, o seu canto era tingido com uma vulnerabilidade palpável. "Canto com esta emoção toda porque senti a dor no coração", disse à "Rolling Stone" em 86.
Com cinco décadas de discos, Tina Turner ganhou oito Grammy, iluminou palcos desde a década de 1960 e conquistou uma nova geração de fãs. "Uma mulher negra a dominar o palco sozinha: isso é um sonho", disse a cantora e rapper Lizzo sobre Tina.
Beyoncé: "e Essas pernas"
Vendeu mais de 100 milhões de discos e abriu caminho para artistas disruptivos como Janet Jackson, Madonna, Rihanna, Beyoncé. "Nunca na vida vi uma mulher tão poderosa, tão destemida, tão fabulosa", disse-lhe Beyoncé no palco do Kennedy Center num tributo em 2005. "E essas pernas!" - as pernas elétricas que lhe deram o cognome Tina "Hot Legs" Turner.
Portugal viu-a duas vezes: em 96 no Restelo e em 90 em Alvalade - todas as notícias referem pernas, brilho, ousadia, voz carnívora.
Emocionado, Mick Jagger, que tem 79 anos, já reagiu: "Ela era calorosa, engraçada, generosa" e todas as estrelas de todo o Mundo estão a louvá-la.
Tina Turner anunciou a reforma em 2000, um ano depois de "Twenty four seven", o último disco, e uma tour final dos 50 anos de carreira. Foi definitivamente o fim. "Eu estava cansada de cantar e de fazer toda a gente feliz", diz ao "Times" em 2019. "É o que fiz durante toda a minha vida".
Ike: Bênção e Maldição
Como o "melhor duo de todos os tempos" era um desastre emocional
"Quase que entrei em transe quando o vi atuar", esta foi a descrição de Anna Mae Bullock, na altura com 17 anos (rebatizada Tina Turner) sobre o momento em que conheceu Ike Turner, com 25. Ato contínuo pediu para cantar com ele. Nasceu assim aquele que foi considerado o "melhor duo de todos os tempos" da história do R&B, já com a estrela rebatizada como Tina Turner. Se começou por ser a namorada de Raymond Hill, saxofonista da banda de Ike, a relação fraternal de Ike e Tina evoluiu rapidamente. Em 1960, Tina estava grávida de Ike, e mergulhava num casamento que durou 16 anos e incluía abusos como "asfixia, socos nos olhos, ser sovada com cintos e no fim, invariavelmente, violada. Ele queria que se notasse", escreveu Tina no seu livro. Nas várias tentativas de fuga, uma delas foi tentar o suicídio. O casal teve apenas um filho, Ronnie, mas Tina criou quatro filhos: Craig (da sua relação com Hill) e Ike Jr e Michael, filhos de Ike.
Maiores êxitos
"Proud Mary" (1971)
Tina e Ike Turner gravaram "Proud Mary", uma versão dos Clearance Clearwater Revival, lançada dois anos antes, que com o famoso refrão "Rolling, rolling down the river" lhes valeu um Grammy.
"Private dancer" (1983)
"Private dancer" é uma canção que ficou famosa em 1984, na versão de Tina Turner. Mas foi gravada pela primeira vez pelos Dire Straits, e foi escrita pelo vocalista Mark Knopfler, que produz o disco de Tina.
"What"s love got to do with it" (1984)
O lançamento do tema vincou a sua carreira como artista a solo, após a separação profissional e conjugal de Ike. A faixa do álbum "Private dancer", foi recusada por Cliff Richards e Donna Summer antes de Tina Turner a gravar.
"Simply the best" (1989)
A versão do original de Bonnie Tyler lançada em 1988 foi o maior sucesso do álbum "Foreign affair". Rebatizado "Simply the best", serviu para a promoção da Liga australiana de râguebi em 1990, e tornou-se um hino desportivo.
"Golden eye" (1995)
Tina Turner foi escolhida para interpretar a cobiçada banda sonora do filme de James Bond "Golden eye", tema escrito por Bono e The Edge, dos U2.