Há setenta anos, quando Aniki Bobó, a primeira longa-metragem de Manoel de Oliveira, chegou às salas, "foi pateado". Um realizador francês, amigo do Mestre, estranhou e perguntou-lhe: "Os portugueses costumam aplaudir com os pés?"
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A obra prima do realizador com mais idade no mundo - Oliveira completou 104 anos na semana passada -, demorou muito tempo a ser entranhada. Mas quem a viveu por dentro, como os actores, não se cansa de a ver. "Já perdi a conta às vezes que vi o filme", sorri Fernanda Matos, a Teresinha da ficção, a menina de coração disputado por dois rapazes, a mulher de 80 anos que aceitou viajar com o JN no tempo, até ao tempo em que tinha onze anos e não podia imaginar que estrear-se como actriz num filme de Oliveira, mesmo sem nunca ter querido ser actriz, a acompanharia a vida inteira. "Ainda hoje me perguntam se é verdade ser eu a Teresinha. E eu digo: pois sou."
Pois é. Nunca mais entrou num filme. "Ser actriz não era a minha vocação". Gostava de ter ido para Coimbra, ter feito Letras, mas os tempos eram outros. Casou, foi mãe e enfermeira. É avó, tem jovialidade invejável, alegria contagiante. Canta, toca piano, lê muito, planta orquídeas, guarda Manoel de Oliveira. "Fui crescendo e cheguei a esta idade conservando sempre muito carinho por ele. É uma pessoa que estimo muito, considero, admiro e respeito." E é-lhe grata. "Muito grata por tudo o que ele tem feito", diz. "Creio que não serei eu só. Todos os portugueses têm uma dívida com Manoel de Oliveira, porque ele levou com a sua arte, com a sua obra, o nome de Portugal além fronteiras. Isso é uma dívida que todos temos para com ele. Além disso, é uma pessoa fascinante."
Ambos partilham a longevidade e a energia. Fernanda Matos conta o segredo. "Nós só começamos a envelhecer quando deixarmos de sonhar. Creio que a razão da longevidade do Manoel de Oliveira deve ser exactamente essa. Porque ele tem feito os seus filmes, que não são mais do que sonhos que conseguiu realizar. E eu, felizmente, também vou sonhando."
Aniki é que, para ela, não tem segredo nenhum. "É uma reposição da vida dos adultos. Porque nós, crianças, brincamos, lutamos, brigamos, fazemos sei lá quantas coisas, mas no fim desculpamos, perdoamos, respeitamos, somos amigos. Então, e nós adultos não fazemos praticamente a mesma coisa?", pergunta. Depois, pensa melhor, refaz a resposta. "O perdão é mais complicado, mas também lutamos, bulhamos, discordamos, mas somos amigos, é assim a vida." O filme, diz, "tem momentos de muita ternura, de muita sensibilidade." E tem muito do que haveria ser a linguagem de Oliveira.
"São os diálogos que traduzem o que ele pensa e quer pôr na tela, acho que essa é a técnica dele", diz. E diz mais. "Aquilo que ele faz não é a "Cantiga da Rua", não é para o grande público, isso não é", mas, exclama, como que respondendo ao público que não é o dele: "pelo amor de Deus, aquele homem ganha prémios em toda a parte do mundo, aquele homem tem muito valor".