"Manoel", o quarto álbum de originais dos Sensible Soccers, dialoga com duas curtas do realizador que trazem memórias distintas do Porto.
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Chegar a um "casamento entre a alma das imagens e a da música" foi o propósito dos Sensible Soccers quando se lançaram ao projeto de musicar "Douro, faina fluvial" (1931) e "O pintor e a cidade" (1956), duas curtas emblemáticas de Manoel de Oliveira que tomam o Porto como protagonista. São duas cidades distantes que nos chegam pela lente do realizador, duas memórias antagónicas, na perspetiva da banda, que encontrou nessa dialética um modo de operar: ora se colam à pele das imagens, ora se lançam a partir delas para voos especulativos.
Havia uma experiência prévia na composição de bandas sonoras: respondendo a uma encomenda da Casa das Artes de Famalicão (CAF), a banda produziu música para "Homem da câmara de filmar", de Dziga Vertov, uma das referências com que Oliveira iniciou a sua obra. A tendência para a criação de estruturas, mais do que canções, terá favorecido esta abordagem, que estimulou o grupo ao passo seguinte: criar dois objetos a partir das imagens "conflituantes" do realizador portuense: um álbum, que "resistisse autonomamente sem as imagens", como explica Hugo Gomes, teclista e programador dos Sensible Soccers; e um cine-concerto, onde os filmes fossem confrontados pela música executada ao vivo (dia 16 de outubro é na CAF). Note-se que os registos estão longe de coincidirem: há temas do álbum que não surgem nos filmes e vice-versa; há versões para cada formato; há faixas esticadas ou encolhidas conforme o meio.
Revitalizar obra de Oliveira
A ideia foi recebida com entusiasmo pelo filho do cineasta, Manuel Casimiro, e contou com o apoio do Criatório, programa de estímulo às artes promovido pela Câmara do Porto. Materializou-se a tempo da celebração dos 90 anos de "Douro, faina fluvial", obra de estreia do realizador, marco do cinema documental português.
"É um filme de juventude, dinâmico e invasivo, onde o protagonista é a cidade, ou um dos microcosmos da cidade, pelo olhar de Oliveira", diz Hugo Gomes, que conhece em profundidade os filmes que musicou. "Trata-se de um Porto ainda com traços rurais, onde há um foco grande no trabalho e no sacrifício. São características que perduram: aquela dureza dos rostos que vem acompanhada de uma atitude enérgica que não admite que lhe pisem os calos". Para lidar musicalmente com o universo da faina nas margens do rio Douro, os Sensible Soccers sentiram necessidade de "terra": "Não somos conceptuais e raramente estabelecemos regras, mas havia aqui um desafio: usamos instrumentos que naquela época não existiam. Era importante colorir o núcleo, feito de sintetizadores, com instrumentos reais que habitualmente emulamos: o piano, a flauta e o saxofone. Era uma forma de trazer terra àquelas imagens".
Já em "O pintor e a cidade", realizado 25 anos depois, o universo muda radicalmente: "Vemos plasmada a evolução de Oliveira enquanto artista, que coloca o espectador numa posição diferente: já não estamos tão em cima dos trabalhadores e das suas caras; há um maior distanciamento e um convite à contemplação - o único rosto em destaque é o do pintor [o aguarelista António Cruz] que nos guia pela cidade". E a cidade não é a mesma de 1931: é já a metrópole moderna a emergir, com ruas comerciais, trânsito e arquitetura nova a serem mostradas pelo primeiro filme português a cores.
Nesta urbanidade os Sensible Soccers introduzem o jazz e dão sequência à sua estratégia: "sincronizar com as imagens onde o realizador age, e adotar o experimentalismo quando a toada é pausada e ambiental". Uma operação que revitaliza as obras históricas de Oliveira.