Festival Tremor prossegue na ilha de S. Miguel até sábado. Desvendar artistas e locais menos conhecidos faz parte do programa que não é para fracos de coração, nem das pernas.
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Quando Igor Stravinsky compôs em 1913 a "Sagração da Primavera", obra considerada atualmente seminal na música moderna, foi amplamente criticado. O mesmo sucedeu a Nijinsky que coreografou a obra. Tudo o que é novo provoca uma repulsa inicial nos públicos, o que nem sempre se comprova a largo prazo.
Ora, para evitar que o público tenha sequer hipótese de fuga, o Tremor rapta festivaleiros. Aceitaria meter-se numa carrinha repleta de desconhecidos para ser levado para local incerto, com a promessa de que teria paisagens bonitas e boa música? Esta é a premissa do certame que, com a sua iniciativa Tremor Todo o Terreno, dá apenas como indicações o local onde serão recolhidos e a hora, um aviso para levarem impermeáveis, sapatos confortáveis, água e muita disposição para andar a pé.
A hora marcada foi nove da manhã. Um condutor a desbordar simpatia recolhe as pessoas, mas não desmonta o jogo. Passados vários minutos, garante que este "é o melhor dia do ano" em que dá para ver a ilha toda de S. Miguel. E os festivaleiros podem confirmar alegremente: está ali o Atlântico imenso a recortar a paisagem, há colinas verdes e repletas de vacas felizes, punhados sem fim de hortênsias a emoldurar, uma paisagem divinal.
Uma centena de pessoas são largadas numa montanha onde se avista um trilho íngreme, há quem garanta sentir-se dentro de um cenário fílmico de travessia de uma fronteira. Na verdade, é o limiar da realidade a ser ultrapassado.
Os participantes são munidos de "headphones", onde ouvem a paisagem sonora composta pelo grupo português Lavoisier. Há uma certa artificialização dos sons da Natureza, mas, se a cabeça está perdida num horizonte celestial, os pés estão bem enterrados na lama e nas pedras que surgem no caminho. A procissão é silenciosa, os participantes vão absortos na música e no deleite visual que os envolve - como se os fosse engolir.
Terminada a audição programada, avista-se uma Lagoa Rasa que serve como aperitivo à Lagoa de Empadadas, que é o espelho de um imponente e denso arvoredo. Abrigada debaixo das árvores, abeirada da água, está Patrícia Relvas, vocalista dos Lavoisier, que, confirmando a suspensão temporária da realidade, canta "Os bravos", de José Afonso, numa gestualidade muito expressiva e única. Do outro lado da lagoa, a voz de Roberto Afonso, a outra parte do duo Lavoisier, responde-lhe também a cantar. E aquele momento ficará tatuado na memória de todos os que participem numa das seis récitas desta performance tão singular.
Ver e ser visto
Os festivaleiros felizes decidem então embarcar numa aventura de nível dois: Tremor Estufa. Aqui a parada aumenta: não só não sabem o local, que lhes é comunicado uma hora antes por mensagem privada, como não sabem quem é o o artista que vão ouvir e ver. Entrados em vários autocarros que saem do centro de Ponta Delgada, há várias apostas a rodar, as mais habituais são: "O local é a Ferraria e o artista é Solar Corona" - mas o tiro sai ao lado.
Desvendado parte do mistério, com enjoos à mistura de tanta curva e contracurva, o local foi o Miradouro do Rosário, na Ponta de Santo António, e o artista é, afinal, o baterista Landrose. A paisagem é inusitada: fica entre uma igreja, um cemitério e uma arriba para o azuláceo do mar.
Há um lado muito curioso que se materializa logo em quem se passear pela ilha: com toda a frequência, os seus habitantes gostam de sair à rua e pôr-se nos pátios das suas casas para ver, cumprimentar e conhecer os visitantes que ali acabam de aterrar. É um momento de efetiva comunhão - e aqui se percebe que o Tremor é um festival também para os açorianos.
Na caixinha de música de Colleen
Com os festivaleiros regressados ao epicentro do Tremor, e à paisagem urbana de Ponta Delgada, uma rapariga grita: "Eh pá, o meu telefone está aqui farto de apitar! Diz que hoje já andei 12 quilómetros!". O Tremor não é para pernas bambas. Talvez por isso mesmo, vividas as aventuras dos "sequestros" de público para as atividades Todo o Terreno, a magia prolonga-se no Teatro Micaelense: agora é um espetáculo formal, formalmente sentado, e são fofas as cadeiras de veludo.
A fada de serviço é a francesa Colleen que conseguiu trazer até à sua plateia a coreógrafa Olga Roriz, ali a tentar passar pelo anonimato de uma comum festivaleira do Tremor.
Como alguém que abre uma caixa de música vintage, com uma bailarina lá dentro, assim é o universo onírico de Colleen. Mas, como Sininho perdeu a magia quando deixou de acreditar nela, então pegou no microfone para explicar ao público que "este era o 250.º concerto, que há 22 anos que tinha este projeto e não se sentia orgulhosa, mas sim feliz por estar a dar este concerto tão emocional no meio do Oceano". Depois retomou a cena em que parece desmontar uma bomba sobre a sua mesa de "DJing" e no final de cada música faz os joelhos convergirem e oferece um sorriso aberto à plateia, como uma criança que acaba de apresentar um teatro à família.
Mais tarde, já noite/madrugada dentro, nas Portas do Mar, Faizal Mostrixxx, do Uganda, com a cabeça enfiada num capacete de estrela, deu um missal de dança, eletrónica e tribal, com palmas e contratempos que fizeram os grupos de espanhóis da plateia revelarem-se aos gritos. De seguida atirou: "Vamos, quero ver-te dançar" e num campo de batalha logo se transformou aquela primeira noite de Primavera.