O público infantil foi imperante no último dia do Festival Tremor Açores, todas as atividades para crianças esgotaram e tinham filas de espera. O projeto comunitário foi muito bem conseguido. Já os concertos em sala foram o desengano do derradeiro capítulo da 11ª edição.
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Logo de manhã, bem cedo, havia um engarrafamento de carrinhos de bebé no Estúdio 13, onde se realizaram as actividades do Mini Tremor, no último dia do festival, sábado, em Ponta Delgada, na ilha açoriana de S. Miguel. "CRASSH_Babies 1.0" era o motivo do congestionamento, uma performance que combina o que Bruno Estima, diretor, chama de "Crasshnês": uma linguagem artística que combina circo, percussão, movimento, teatro físico e comédia visual.
Da parte da tarde, o estúdio de Ponta Delgada que tem um auditório lá dentro recebeu o espetáculo para crianças mais velhas "CRASSH_DuoCircus", uma engenhosa produção que tem passado por vários teatros na Península Ibérica.
O tempo é essencial neste tipo de produções: o tempo musical que passa do mais simples ao mais virtuoso, o tempo físico da comédia e o tempo de resposta destes públicos que são sempre bastante mais imprevisíveis, dado ainda não terem grandes filtros sociais. Os espectadores mais novos são uma franja lateral nas programações culturais, tornando-se evidente que pedem produções próprias e não apenas aquelas que servem como mediação para criar públicos futuros.
O Mini Tremor seguiu com um workshop de percussão corporal, e enternecedora foi a atitude dos formadores que ao ver o avultado número de pretendentes sem bilhete não teve coragem de lhes negar a entrada. Com jogos simples de associação entre gestos e números, todos conseguiram criar complexos códigos musicais. "Isto é mesmo espetacular" dizia José Maria à amiga Matilde, com os olhos a brilhar. Matilde a trincar a língua ouvia atentamente os códigos e executava, sempre imperturbável.
Estava tudo a correr tão bem, até chegar o Louva-a-Deus, aquele gesto de som impossível que deixou Ema num ataque de nervos. Bruno Estima tranquilizou-a: "Muito devagar, tens de bater na parte que tem mais carninha do braço e fazer o som, mas o Louva-a-Deus é para estudares em casa".
"Som Sim Zero"
A criação com a comunidade é uma das bandeiras do Festival Tremor. O projeto Som Sim Zero, que une o coletivo ondamarela com a Associação de Surdos de São Miguel e o grupo de percussão açoriano Bora Lá Tocar, apresentou ontem um comovente espetáculo.
Partindo do Jardim Antero de Quental numa arruada onde se levavam várias bandeiras, com pedidos de tempo (o bem mais precioso de todos) - para sorrir, para amar, para ouvir o filhos cantar, congregaram centenas de pessoas numa procissão até ao Jardim botânico António Borges. O cenário mágico, com a performance a decorrer numa gigantesca figueira australiana, e com as personagens com bizarras roupas de época misturadas, criou uma aura espectral visual.
O coletivo ondamarela concebe, desenvolve e implementa projetos artísticos colaborativos, unindo, num lugar específico, um grupo de pessoas e um gesto artístico construído em partilha. Trabalharam com comunidades em Bragança, Ílhavo, Guimarães (Capital Europeia da Cultura 2012), La Valletta (Capital Europeia da Cultura 2018). A Associação de Surdos da Ilha de São Miguel (ASISM) cria atividades de índole cultural, recreativa e artística.
Os Bora Lá Tocar, com mais de 30 pessoas, têm um coletivo responsável pela construção dos seus próprios instrumentos e pela composição do imaginário rítmico popular que pauta o seu repertório.
Algumas contrariedades
Se o dia chegou cheio de promessas, e grandes atrativos da parte das artes performativas, no último dia do Tremor, um dos mais participados até por causa do passe de fim de semana, a música foi o mais fraco. Com uma ressalva: PS Lucas foi uma muito agradável surpresa, no Teatro Micaelense. Excelentes executantes, música que sabe como um abraço na chegada a casa, algures entre Spain e John Denver. Para exacerbar a sensação de familaridade, PS Lucas trouxe Carlos Medeiros para tocar flauta transversal . "Little lizard", a sua tentativa de escrever sobre offshores, Novo Banco e esquemas, como explicou, foi das mais aplaudidas.
Nas Portas do Mar, Holy Tongue com a percussionista Valentina Magaletti e o produtor Al Wootton e a adição de Susumu Mukai resultaram num dub experimental que parecia ter o público mergulhado numas furnas figurativas, dado o nível de torpor nos corpos.
Logo a seguir "a festa de celebrar a ferida que sarou" no Coliseu Micaelense, os Rastafogo que com o seu Flautista de Hamelin pôs todos os ratos a dançar forró, enquanto falava sobre a importância de "eleger Lula, da cultura popular e do público aceder ao seu Instagram e dar like". Tudo por ordem aleatória, mas repetido várias vezes. "Se a estrada é sem norte nem o sul te vai salvar", como cantavam. O certo é que havia muito calor dentro de um dançante Coliseu: "Quando o fogo se acabar, a gente bota fogo outra vez".
Se na sexta-feira à noite as Lambrini Girls foram uma das melhores do cartaz do Tremor 2024, havia uma certa expectativa com as Deli Girls, projeto de Brooklyn que prometia uma mistura de punk e dance.
Ora, como a água e azeite, também este é um casamento infeliz.
Esteticamente, era como se a Milla Jovovich, a Leeloo de cabelo ardente do filme "O quinto elemento", tivesse ido buscar alguém aos carrinhos de choque de uma obscura festa de santos populares e desatasse num frenesim oleaginoso. Musicalmente, a vocalista provoca faringite por empatia e nada ali é realmente salvável, nem o punk nem o dance.