Atriz mítica do cinema escandinavo, Trine Dyrholm fala de “A Rapariga da Agulha”.
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É uma das atrizes dinamarquesas mais famosas da sua geração, tendo já uma carreira internacional. Em “A Rapariga da Agulha”, nomeado para o Óscar de melhor filme internacional, interpreta o papel de Dagmar, uma mulher que realmente existiu e que se cruza aqui tragicamente com a protagonista ficcional, numa história passada em Copenhaga, em 1919, após o fim da I Grande Guerra. Em Cannes, onde o filme estreou mundialmente, estivemos a conversar com Trine Dyrholm.
O realizador do filme já definiu o seu trabalho como “corajoso”. É assim que se gosta de ver, como atriz?
Nem sempre na minha vida privada. Mas como atriz posso ser corajosa, se estiver rodeada das pessoas certas. É assim que gosto de colocar as coisas. Porque necessito de uma boa matéria e de um bom diretor. Se existir esse ambiente, sim, posso ser uma atriz corajosa.
Nunca tinha trabalhado com o Magnus von Horn. Como é que soube que era a pessoa certa para se sentir bem acompanhada?
Tento sempre perceber qual é a visão do realizador, porque dessa forma posso ajudá-los melhor, quando estamos a filmar. Por vezes não conseguem pôr em palavras o que é a visão deles, mas posso perguntar a outras pessoas e depois começamos a dialogar e percebo bem se podemos trabalhar juntos ou não.
Como é se interpreta uma personagem assim, com o segredo que no final nos é revelado?
Eu não tentei justificar as ações dela. Mas tento justificá-la, como ser humano. Não acredito em monstros, em pessoas boas e pessoas más. Mas acredito em más ações, é claro. O que ela fez é horrível. É um crime. Mas também acredito que ela, por vezes, pensa que está a fazer bem.
Sente que ela também teve esse sentimento?
Ela é também uma consequência daquela estrutura social. Onde é que se iriam pôr todas aquelas crianças indesejadas, quem iria tomar conta delas? Ela consegue tirar a culpa de cima daquelas mães e construir uma narrativa sobre a boa vida que aquelas crianças estão a ter com as boas famílias que as adotam. Mesmo que fosse falso.
Não teria também um certo grau de loucura?
Sinto que ela tem alguns problemas, sim. Como sabe, a personagem existiu mesmo, e nós sabemos que ela teve uma existência traumática, foi abusada sexualmente quando tinha onze anos. As histórias que ela conta no filme sobre o seu passado são verdadeiras. Não justifica o seu comportamento posterior, mas mostra que também é um produto da sociedade. E era uma pessoa solitária. Nunca saberemos porque fez o que se vê no filme.
Não era esse também o objetivo central do filme.
O nosso filme aborda diversas questões. Fala de maternidade, de irmandade, de não sermos desejados, do aborto, do que é ou não é crime. O aborto ainda é proibido na Polónia e em muitos outros países.
A Dagmar e a Karoline como que se complementam, precisam uma da outra.
Sim, são por vezes como que um espelho uma da outra. No início, a Dagmar salva a Karoline, ajuda-a com as crianças, mas a certa altura a situação muda. É a Dagmar que precisa da Karoline, que fique com ela e que viva com ela aquele pesadelo.
Como é que lida com os seus próprios traumas?
É por isso que o cinema é tão importante para mim. E a arte em geral. É onde podemos partilhar estes temas da nossa existência. Eu sou uma pessoa privilegiada, tive uma vida boa, em muitos aspetos, mas há tanta gente que luta, há guerras, há essa outra guerra que é o direito ao aborto. A arte pode servir para curar e sentir que afinal não estamos sós.
Sente essa catarse quando interpreta papéis como este?
O que tenho é de comunicar com os espetadores. É isso o que o ator faz, com as suas capacidades. E tento sempre escolher papéis que sejam relevantes.
No seu trabalho neste filme há a uma cena de nudez. Hesitou em fazê-la?
A nudez foi uma questão de confiança. Sempre gostei dos ambientes dos banhos públicos. Há vários corpos nus. Quando vi aquelas mulheres à minha volta foi muito comovente para mim. Primeiro puseram-me uma toalha, mas não queria parecer a atriz que não quer aparecer nua. E a cena fazia muito sentido para mim. A minha intuição disse-me para a fazer. Senti que era generoso para o filme.
Não é a primeira vez que representa personagens que existiram mesmo. Como é a sua abordagem nestes casos?
Não me foco demasiado na pessoa real. É sempre uma ficção. Neste filme a história é sobre a Karoline. Retiro tudo o que me pode inspirar e tento ser sempre fiel à minha intuição. Não fico demasiado colada a como aconteceu, porque de qualquer forma nunca saberemos exatamente como foi. Vejo todas as personagens, tenham vivido realmente ou estejamos a criar uma ida para elas, como pessoas reais, mas na ficção.
Quais foram as suas principais inspirações, desta vez?
O Magnus deu-me a ver um clip do “Oliver Twist”, por causa do Fagin, que é uma personagem imprevisível. Inspirei-me imenso na sua vivacidade. A Dagmar é uma personagem muito dura, mas também tem esse lado. E deu-me a ver um excerto de “O Exorcista”, para perceber como é que o Mal se pode instalar em nós. Qual a sua aparência.
A personagem da Dagmar é muito conhecida hoje na Dinamarca?
Não é que toda a gente a conheça, mas há muito gente que sim, sabe da sua existência. Há pormenores da sua vida que são conhecidos. É conhecida sobretudo pelo espetáculo que foi descobrir todas as coisas bizarras que fazia e os crimes que cometeu. Houve quem a chamasse de monstro, mas também de alguém que criava anjos. Era como se chamava ao aborto na época.
A história é muito forte, mas a forma como é filmada ainda lhe dá mais força, no seu visual, na sua estética. O que pensou quando viu o filme?
Fiquei impressionada com o visual do filme, sim. Quando filmámos já foi um desafio, porque era tudo muito técnico. Foi também um desafio explorar emoções no meio de uma filmagem tão técnica. Um desafio, mas no bom sentido. E sempre soube que o filme ia ser tão bonito e espantoso visualmente. É um filme duro, mas comovente. Estou muito orgulhosa do trabalho do Magnus e de ter feito parte deste filme.