No arranque da 74ª edição, o cineasta espanhol Albert Serra foi chamado a explicar fascínio pro Putin. Entrevista de Abel Ferrara a Volodymyr Zelensky concentrou atenções.
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A Berlinale é conhecida pela dimensão política das suas escolhas, pela forma como defende as causas mais importantes em cima da mesa em cada momento, não deixando de estar atenta às ameaças à liberdade que se vão vendo um pouco por todo o mundo.
Algumas semanas antes do festival começar, a direção decidiu “desconvidar” para a sua sessão de abertura os representantes do partido de extrema-direita com assento no parlamento, o AFD, devido às suas posições xenófobas, e a rua que dá acesso ao Palácio do Festival, momentos antes da abertura, quinta.feira ao fim da tarde, estava recheada de manifestações, uma apoiada pelo próprio festival, contra o que apelidaram de “fascistas da AFD”, e duas outras de profissionais do cinema protestando pro melhores condições de trabalho.
Mas lá dentro, e mesmo antes do festival começar oficialmente, a polémica já estava instalada. Na habitual conferència de imprensa do júri, o espanhol Albert Serra, agora já com uma “costela” portuguesa, dada a sua relação de trabalho com a Rosa Filmes, que coproduziu “Pacifiction”, foi confrontado com declarações suas em que afirmava sentir algum fascínio por personalidades como Putin e Trump.
O realizador defendeu-se, referindo que essas declarações, já com dois anos, foram retiradas do contexto de uma entrevista de mais de duas horas, mas a polémica estava instalada. A presidente do júri, a atriz, escritora e ativista Lupita Nyong’o, nascida no México, de pais quenianos, salientou que os próximos dez dias prometiam ser muito animados e “apetitosos”, em termos de discussões políticas, e tensão seria quebrada pela divertida intervenção de outro membro do júri, a escritora ucraniana Oksana Zabuzhko, quando disse que nos próximos dias ia ter oportunidade de “educar” Albert Serra.
Curiosamente, pouco depois, ainda antes da abertura oficial e numa das sessões destinadas exclusivamente à imprensa, foi possível assistir à primeira projeção de “Turn in the Wound”, de Abel Ferrara.
O realizador nova-iorquino, há muito auto-exilado em Itália, deslocou-se à Ucrânia, falou com várias pessoas afetadas pela guerra, entrevistou Zelensky e foi ele próprio entrevistado pela televisão nacional, afirmando ser propósito do filme compreender o porquê desta guerra.
Aos 71 anos, diz, compreende cada vez menos a necessidade de um ser humano matar outro ser humano desta forma. Em paralelo com as impressionantes imagens da Ucrània, Ferrara colabora com Patti Smith, que oferece ao filme algumas das novas composições feitas com o Soundwalk Collective, que atuará em Lisboa brevemente.
Da Irlanda ao Irão, a mesma denúncia
Ao mesmo tempo, o festival abria com o primeiro filme em competição, “Small Things Like These”, também em tom de denúncia. No caso, os abusos ocorridos em casas de recolhimento católicas para mães solteiras na Irlanda dos anos de 1980. O filme, interpretado e produzido por um dos atores do momento, Cilian Murphy, candidao ao Óscar de melhor ator pelo desempenho em “Oppenheimer”, vale mesmo mais pela sua temática, confirmando a estranheza das opções de filmes de abertura das últimas edições do festival. Talvez a míngua de estrelas que passarão nos próximos dias por Berlim tenha eregido Cilian Murphy como um dos rostos mais mediáticos, pelo menos para o público em geral que esperava a entrada da equipa do filme na passadeira vermelha da Berlinale.
Depois da Irlanda, o Irão. Desta vez, com um filme que estará seguramente no palmarés final, tal a forma como foi recebido. “My Favorite Cake” corresponde ao regresso a Berlim de um filme de Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha, depois da seleção em 2021 do impressionante “O Perdão”, sobre uma mulher que descobre que o marido estava inocente do crime que o levou a ser executado.
Ora, nesse ano o festival decorreu completamente online, sem a presença em Berlim dos argumentistas e realizadores, e este ano o governo iraniano impediu a sua viagem. Depois de um libelo contra a pena de morte, “percebe-se” que o regime em vigor em Teerão tenha reagido assim a um filme como “My Favorite Cake”.
Por detrás da já de si comovente história de uma mulher de 70 anos, solitária muitos anos após a morte do marido e que decide levar para casa um taxista da mesma idade também ele vivendo sozinho, se encontra algo de muito mais fundo de crítica sobretudo à falta de liberdade da mulher. Numa das cenas muitas cenas de corajoso desafio ao regime, a protagonista decide salvar uma jovem que ia ser presa pela polícia da moral por ter mal posto o seu jihab, deixando ver mais cabelo do que o permitido!
O filme, rodado pouco depois do protestos que se espalharam por todo o país após a morte da jovem Mahsa Amini, quando se encontrava presa pelos mesmos motivos, é também um dos primeiros a mostrar uma mulher sem o lenço na cabeça mesmo dentro de casa, depois do regime islâmico implantado em 1979. Com a sua ausência “colmatada” por uma fotografia dos dois autores na mesa da conferência de imprensa, foi a escritora, jornalista e atriz Lili Farhadpour, a espantosa protagonista do filme, quem leu uma mensagem por eles enviada ao festival. “Sentimo-nos como pais que estão proibidos de olhar para o seu filho recém-nascido. Estamos tristes e cansados, mas não estamos sozinhos. Esta é a magia do cinema. O cinema une-nos. É uma janela que abre um tempo e um lugar onde nos podemos encontrar!