Nunca na história dos festivais tamanha quantidade de gente se juntou para o concerto de abertura, daquelas atuações que acontecem ainda o sol vai alto e a massa humana habitualmente permanece longe dos palcos, entretida com outras trivialidades. Mas foi diferente esta quinta-feira à tarde, com os primeiros sons do festival Super Bock Super Rock projetados por Alexander Search.
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A explicação é fácil: trata-se de um projeto encabeçado por Salvador Sobral, o homem de quem se fala desde que naquela noite em Kiev semeou um regozijo semelhante ao do míssil de Eder em Paris. "E o Salvador é o Zé Maria da música", comentou um festivaleiro que pediu o anonimato mas que por ali estar provavelmente se chamará Meomanuel da Silva Milaneza da Edp Super Carslberg.
Mesmo que Deus se tenha esquecido de ligar o ar condicionado, mesmo que imperasse o calor debaixo da sombra da pala do Pavilhão de Portugal, uma considerável massa humana ali se deixou ficar para fruir o indie rock de Sobral sintonizado na poesia de um heterónimo de Fernando Pessoa que só agora Portugal descobre.
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É uma música deleitável, urge realçar - cheia de protuberâncias elétricas, crescendos e curvas, a debandar-se do óbvio e a difundir toada febril. E Salvador, embrulhado num fraque, desatravancou-se naquela sua postura que se lhe reconhece: cheio de verdade em cada sílaba, o tronco em ziguezague, os braços frenéticos numa agitação e a libertar a sua voz serpenteante que se acasalava, aqui e ali, com um piano cristalino.
A dada altura do concerto, uma lâmpada acendeu-se em cima da sua cabeça com penteado de Samurai e uma ótima ideia surgiu: o cantor desatou a lançar para o povo centenas de papéis com poemas do heterónimo de Pessoa. Foi bonito de ver aquele aguaceiro de versos derramado na multidão, provavelmente o gesto artístico mais romântico desta temporada de festivais. Um dilúvio poético - eis o que se afigura fundamental.