Sim, morreu um amigo, mas como dizê-lo se a incredulidade ainda mora em nós e há-de morar por muito tempo, até que a ausência faça sentir o seu peso e se transforme em memória magoada? Como dizê-lo com palavras (com que palavras e sem que palavras?), com o encadeamento das frases, os efeitos do discurso, a literatura (a boa e a má literatura?).
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Manuel António Pina (pois está bom de ver que é dele que falo) costumava dizer (costumava ou costuma?) que um poeta, quando se põe a escrever sobre a morte de um amigo, ao chegar ao terceiro verso, já está mais preocupado com a escrita do poema do que com a morte do amigo. Há certas alturas, atrever-me-ia a dizer, em todas as situações vitais ou existenciais, em que só o silêncio fala. É o infalável que fala.
Num universo saturado de palavras e de gestos teatrais, Já não é possível dizer mais nada/mas também é impossível ficar calado.
Manuel António Pina foi (é) um grande poeta, um grande e original contador de histórias infantis (infantis? Ele não tolerava esse adjectivo, porque dizia que não escrevia para a infância, mas para a criança que existe em todo o homem e em toda a mulher - Brincarei ainda na infância/lembrando-me agora?), um contista e novelista singular (Os Papéis de K, lembram- -se?), um inigualável cronista, de farpa certeira, de quem Manuel Ramos, que foi director do Jornal de Notícias, dizia há muitos anos: O Pina é o maior cronista da nossa imprensa.
O Manuel António Pina foi isso tudo e foi, inesperadamente (porque um pouco contra um certo establishment literário), "Prémio Camões", entre outros prémios que obteve, inclusive, de crónica, em 1994, com "O anacronista". Já o sabemos. Para completar o florilégio da retórica, "faz muita falta à nossa cultura". Mas o que me interessa agora, egoisticamente, é a falta que ele me faz, que ele me vai fazer, como para muitos outros para quem o seu convívio era uma fonte vital. Como viver com o universo desfalcado da sua presença? Como passar sem o pão nosso de cada dia nos dai hoje da sua crónica diária na última página do JN?
Tínhamos ficado de nos encontrar para uma cavaqueira interminável, quando eu entrasse de férias. Já não o fazíamos havia algum tempo, na sua casa de S. João Bosco, de que ele se servia para escrever. No dia 3 de Agosto, telefonei-lhe a dizer que já estava livre. Disse-me que se sentia mal e que deixasse passar mais uns dias até melhorar.
Na semana seguinte, entrou no hospital. E foram dois meses a deambular de cá para lá e de lá para cá, dois meses atravessados por um Verão incomum. Houve manhãs claras e outras nevoentas, dias com sol e outros com chuva e dias assim-assim. Dois meses num vaivém entre o sol e a sombra, entre caminhos que se rasgavam e outros que se complicavam e obstruíam. Acabou por vencer a sombra. A última vez que o vi, olhou-me fixamente com um olhar vazio (ou resignado? ou de animal acossado?) e parecia querer dizer-me: "A nossa conversa fica adiada para sempre".
Porque é tudo para sempre, mesmo a efémera morte,
encontrar-nos-emos eternamente
e nunca mais nos veremos.
O impossível volta a ser impossível. Para sempre.