Mais de uma centena de letras do escritor, criadas ao longo das últimas quatro décadas, foram reunidas no volume “A invenção do canto e outros versos”.
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Uma certa mas indefinível sensação de familiaridade apodera-se do leitor assim que entra em “A invenção do dia claro”, o volume da Imprensa Nacional que reúne boa parte das letras de Carlos Tê.
A razão para esse estado de espírito pode parecer óbvia – afinal, nem mesmo o mais desatento dos seres terá passado à margem de temas como “Chico fininho”, “Porto Covo” ou “Problema de expressão”, apenas para citar alguns exemplos –, mas as razões dessa identificação quase imediata são de outra ordem.
Afinal, Carlos Tê é uma espécie de cartógrafo sentimental, tornando nossos e só nossos os seus próprios estados de alma (ou, para sermos mais exatos, das personagens a que dá vida através das letras, as quais, por sua vez, ganham ainda outra existência assim que se convertem em canções).
Através da sua escrita ágil, somos o “Caubói solidário”, vindo “do deserto / do reino dos catos / lá onde brota a virtude / e a pureza dos atos”; o apaixonado sofrido chamado Nicolau da Viola, que conclui amargamente que “não se ama alguém que não ouve a mesma canção” ou o ardiloso “Mago do bilhar” (extraído do antológico “Mingos & os Samurais”), “naquele seu jeito de pluma / a sábia pose dum mestre bilharista / que nem o próprio tempo esfuma”.
As mil e uma matizes do amor, com o seu longo cortejo de inseguranças, euforias e estados mais ou menos depressivos, ganham foros de ciência em letras que, sendo ou não poemas no sentido formal do termo, exalam uma poeticidade incomum no universo da música popular.
Despidas da voz e das melodias, as letras apresentam-se sem o corpo que as canções acabam por trazer.
Mas talvez o autor peque por modéstia excessiva quando afirma que os textos por si só não passam de "projetos". Se é certo que só a junção de todos estes elementos (letra, melodia, arranjos e voz) lhe dá a grandiosidade devida, a disponibilização das letras de forma autónoma, como acontece neste livro, é uma forma de acedermos à sua essência e admirarmos, em muitos casos, a sua constituição e arquitetura.
Entre a inaugural “Rapariguinha do shopping” (1980) e “Xerazade” (2022) mais de quatro décadas se passaram sem que Tê, todavia, tenha perdido o encantamento de quem acha que “tudo isso veio numa simples canção”.