Na sua nova obra, o lendário realizador Frederick Wiseman filma a correspondência entre Tolstoi e a esposa.
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Quem é um pouco iniciado nestas coisas do cinema associa normal e imediatamente o nome do norte-americano Frederick Wiseman ao documentarismo. Numa posição algo provocatória, diríamos mesmo que, depois dos Lumière, Wiseman é o maior documentarista que o cinema jamais conheceu.
Antes de dizer que o cinema era uma invenção sem futuro, os irmãos Lumière fizeram milhares de filmes de um minuto, documentando o que se passava à sua volta. Por seu lado, e desde os magníficos e românticos anos de 1960, Wiseman começou a filmar as principais instituições americanas – hospitais, escolas, museus, replicando a sua metodologia, que nos oferece filmes de várias horas que não desejamos que acabem, na Europa onde se radicou, sobretudo em Paris, onde vive há cerca de vinte anos.
Ora, Wiseman, já com quase 94 anos e meio, está em grande forma e “aproveitou” o covid e o confinamento – “tinha de trabalhar”, já assumiu – para tentar a ficção, pela segunda vez na sua vida. Só que “Um Casal”, o belíssimo filme que pode ver a partir de hoje nos cinemas, “documenta” a correspondência entre Leo Tolstoi e a sua esposa Sophia, lida pela atriz francesa Natalie Boutefeu.
Cruzando essa fronteira, a quebrar como todas as fronteiras, entre a ficção e o documentário, Frederick Wiseman aborda uma das questões mais perenes da humanidade, a da relação entre um casal, neste caso um grande artista e a sua esposa. De um conjunto imenso de cartas entre os dois, homem e mulher de um matrimónio, Wiseman e Butefeau constroem uma narrativa que nos fala da construção, sempre complexa, de uma relação entre dois seres.
Filmado nos exteriores de uma ilha britânica livre de covid, durante a pandemia, ou em interiores que delimitam a intimidade do casal, o filme de Wiseman está longe do “fazer bonito”. É bonito, é mesmo maravilhoso, pelo que nos dá a ver destes dois seres, através da sua correspondência – num mundo sem internet e redes sociais – onde cada palavra era bem pesada. Na simplicidade do seu gesto, na lição de vida de quem muito viveu, no cinema livre que representa, é uma obra imperdível.