Bastou arrastar as pesadas e ferrugentas grades do decrépito elevador e subir até ao quarto andar para tudo mudar.
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Era noite, mas, mesmo que não fosse, o olhar inexpressivo do ganso embalsamado seria o único a sobressair do soturno permanente da recepção onde Talaat Botross descansa numa cadeira.
Ele sabe que o seu hotel não tem a luz nem o romantismo literário do vizinho Cecil, onde Laurence Durrel escreveu parte d'O Quarteto de Alexandria e Winston Churchill queimou alguns puros no famoso bar. Os hóspedes também o sabem e é nesse hiato cúmplice da ocasião que o recepcionista emerge do pequeno balcão onde passa as noites de olhos postos no Al-Ahram, o decano da imprensa árabe. Eficaz, mas sem grandes cortesias, sorri e abre o livro de registos preenchido a tinta de várias cores já que essas modernices dos computadores ainda não chegaram ao Hotel Crillon.
Do lado de cá do balcão, outro homem, cuja magreza se perde na desbotada bata azul-marinho, espera, sob o olhar atento do ganso e da outra bicharada empalhada, o momento de conduzir os hóspedes pelo labirinto de quartos e salas de estar, órfãos do esplendor de outrora. Mas há coisas que a erosão do tempo não apaga de Alexandria. É das varandas do Crillon que se observa o imperdível pôr-do-sol mesmo por trás da grande mesquita que domina a Al-Corniche, a marginal onde os casais namoram sem intimidades, os pescadores tentam a sorte à cana nas águas sujas do Mediterrâneo e os táxis circulam dia e noite como se todos os segundos fossem horas de ponta.
Só ao balcão do Crillon parece não chegar o bulício da Al-Corniche. Talaat Botross permanece, sem pressa, à espera de novos viajantes. "Sou católico, sabe?", pergunta a despropósito. Não sabia, mas a confissão ajuda a quebrar o gelo e a descobrir algumas histórias dos cristãos cópticos do Egipto. Uma minoria que, apesar de tudo, diz viver feliz e tolerada entre muçulmanos.