“O que carregamos?”, peça de Rui Spranger, leva atores sem-abrigo ao palco do Teatro Nacional de São João
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Porto Um ator com a camisola do Teatro Nacional São João varre o chão, onde se encontram vários corpos deitados, e com a escova aproveita para lhes contornar a silhueta. A cena faz o público rir e parece inusitada, mas todos os dias se repete. Não no palco do Teatro Nacional, mas do outro lado da parede, no porto maior dos sem-abrigo da cidade do Porto. O homem que varre ri.
Normalmente está “Do lado de fora”, esse grupo construído com Rui Spranger e a sua Apuro, associação filantrópica que promove a inclusão através da arte. Quando o grupo começou, ensaiavam das 15 às 17 horas; mais tarde, mudaram o horário das 18 às 20 horas, para incluir aqueles que voltaram a trabalhar e a estudar”, diz Rui Spranger. Parecerá uma minudência, mas é a prova cabal de que a arte promove inclusão, facto que a voz off relata logo no começo: “Eu era desempregado e agora estou empregado porque consegui comunicar. Eu nunca deixei o Lado de Fora, mas mantenho sempre a liberdade no meu coração”.
Mas, “O que carregamos”, nome da peça, e essa metáfora das malas sempre transportadas pelos atores vestidos de palhaços, com a alusão ao deputado do Chega feita como um relato noticioso por Rui David, não é uma obra de caridadezinha. Nem são notas biográficas daqueles que ali se encontram, desta feita, no palco do teatro. Apesar de o mesmo homem vir constantemente lembrar “Olha a mala”, porque estas bagagens não são passíveis de abandono, é preciso carregá-las e com orgulho partindo para novas viagens.
Dores e flores
A produção é feita de gags, a grande maioria a relembrar as façanhas de Buster Keaton ou Charlie Chaplin, mas com perucas e figurinos de cortes saturados. Cada um transporta a sua mala e nessa carga carrega álbuns de fotografias, flores, dores, amores e desamores e alguns até a morte. Como a figurinista que faz um caixão por medida a uma das atrizes, e a quem nenhum figurino lhe convém.
Estar no palco é uma escolha. Na última produção do Lado de Fora, o elenco completo só conseguiu estar todo presente à sétima representação. Mas é necessário refrear os julgamentos e deixar a porta sempre aberta. Como o número de Gloria Gaynor, com o insistente ator que só deve entrar no “quarto ato”, mas insiste em roubar a cena. Cada vez que se faz uma escolha, há uma parte da qual é necessário abdicar. É preciso saber o que estamos a subtrair e muitas vezes é uma adição.
E nestas contas de adição e subtração, nem sempre a matemática bate certo. Não é possível desumanizar cada um dos “palhaços” que se encontram no palco, porque cada um tem uma história, uma família e são filhos e muitos são pais de alguém. O que os distingue é como chegaram até aqui. A verdadeira inclusão não é feita por guetos, nem sequer na arte. Por isso, alguns elementos do elenco são atores amadores, amadores porque amam o teatro, apesar de não carregarem as mesmas malas. As palmas, essas democráticas, são para todos e servem para dar um lugar central a quem vive na sombra – o que faz toda a diferença na vida de quem vê e de quem representa.