Encenador Ricardo Pais mergulha nos conflitos familiares de "Longa jornada para a noite", de Eugene O'Neil, guiando atores como João Reis e Emília Silvestre. Estreia esta quinta-feira no Porto.
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"Nenhum de nós tem culpa das coisas que a vida nos fez". Agarramo-nos a esta frase piedosa de Mary para lidar com o passado tortuoso que condiciona todo o presente da família Tyrone em "Longa jornada para a noite", peça de Eugene O' Neil (1888-1953) que reflete a própria vida do dramaturgo e que devolve Ricardo Pais à encenação.
Estreia esta quinta-feira no Teatro Nacional São João, no Porto e fica em cena até 7 de maio.
Era um desejo antigo do ex-diretor do TNSJ - desde 2007, pelo menos, quando a peça foi traduzida por Luísa Costa Gomes. E não vale a pena anunciar com pompa que se trata do "último espetáculo de Ricardo Pais", tantas vezes o encenador ameaçou retirar-se, regressando sempre com renovada argúcia e elegância.
Se for o caso, no entanto, despede-se com "grandeur". E, sobretudo, com coragem. Porque a peça de O"Neil, "escrita com muitas lágrimas e sangue", como confessou numa dedicatória dirigida à sua última mulher, tão pessoal e dolorosa que o dramaturgo quis que apenas fosse estreada 25 anos depois da sua morte (acabou por ser apenas três anos depois, em 1956, na Suécia, valendo-lhe um Pulitzer póstumo), traz ecos do "drama que vivi vertiginosamente na minha primeira família", admite o encenador. Que confessa ainda a dificuldade emocional durante a construção do espetáculo: "Custa-me ver as cenas. Fico comovido e chocado".
Todos os traumas à vista
Não será apenas o encenador a ser atingido por estilhaços de reminiscências dolorosas, tão largo é o espetro de traumas contido no texto.
"A disfuncionalidade da família gera entropia - o que provoca a tragédia", resume Ricardo Pais, que corrige uma expressão anterior - "moinho de maldade" - por não ser totalmente certeira. Porque a maldade é apenas uma das faces da peça e desta família; a outra é o amor, incondicional, "apesar de tudo".
O píncaro de O"Neil
Situada num local concreto - a Monte Cristo Cottage, casa de férias dos O"Neil no Connecticut, EUA -, a peça é um desafio à análise dramatúrgica. Tem características formais da tragédia na sua duração linear, de manhã à noite, uma "jornada fatal", como defendeu Sófocles.
Mas está impregnada de modernismo: da técnica analítica de Ibsen, que faz do passado o verdadeiro motor dos factos presentes (o que viola a unidade temporal da tragédia); do subjetivismo visceral de Strindberg, mestre em "infernos familiares" (o que afeta a pureza da relação dialógica entre sujeitos, inserindo a dimensão intrapsíquica); e até certo grau do idealismo de Tchekhov, nessa projeção do passado (ou do futuro) como o único tempo feliz.
Mas O"Neil, Nobel da Literatura em 1936, tem a sua própria arte e "Longa jornada para a noite" é considerado o seu píncaro. Há dois nós a resolver no presente da família. A dependência da morfina por parte da mãe (interpretada por Emília Silvestre). E a tuberculose de Edmund (personagem que remete para o próprio autor e que é defendida por Simão do Vale Africano).
Mas é a teia definida pelo passado que condiciona a resolução destes problemas. Até a simples admissão destes problemas. E, assim, há uma espiral de acusações, ressentimentos e acessos, sempre em dança com o arrependimento, o afeto e a compreensão.
Dentro da coisa alucinada
Um terreno fértil para os atores, o outro motivo que levou Ricardo Pais a trabalhar o texto: "É preciso ajudá-los a entrar dentro desta coisa alucinada". E Ricardo peneirou, afinando os excessos emocionais suscitados pela obra.
Ajudou João Reis a esculpir o seu James Tyrone, e o ator é certeiro em todas as notas da personagem (um avarento patológico que se tortura com as suas opções de carreira enquanto ator). Ajudou Jamie, o filho mais velho, interpretado por Pedro Almendra, a lograr um convincente alcoólico (personagem altamente ambígua, tratado como um traste pelo pai, assumindo-se ele próprio como um traste, mas capaz da mais bela manifestação de afeto de toda a peça).
E ajudou a que todos os movimentos e configurações em cena fossem significativos, no interior de um espetáculo em que as várias linguagens - da iluminação à cenografia - se concentram numa verdadeira unidade dramatúrgica.